Exacerbada pela extrema-direita, ideologia que confunde policial com soldado em guerra não é de hoje. Assim como seu alvo – o “vagabundo”, tido como descartável por não se integrar na ordem capitalista e sacrificado todo dia “em nome da paz”
Em fevereiro deste ano uma operação policial na Vila Cruzeiro, Rio de Janeiro, resultou na morte de 8 pessoas. Realizada pelo Batalhão de Operações Especiais (BOPE), da Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro, e pelo Núcleo de Operações Especiais (NOE), da Polícia Rodoviária Federal, a incursão apreendeu armas e entorpecentes, que foram dispostos especialmente para as fotos dos jornais e “prestação de contas” na coletiva das autoridades policiais. Numa das imagens divulgadas, os policiais da PRF estão ao lado do material empunhando fuzis como se estivessem em prontidão para o ataque. Eles usam uniforme camuflado, verde musgo, com proteção à prova de balas; rádio comunicador pendurado na altura do peito; faca e pistola disponíveis na cintura. Alguns portam mochila com insumos para o combate, além dos cartuchos enfiados na frente do colete, numa demonstração de preparo para atuação demorada em campo. Dois policiais usam chapéu camuflado para a selva e outros dois têm um “lenço tático” enrolado no pescoço – a julgar pelas fotos da operação, divulgadas pela imprensa, servem para encobrir o rosto. O traje de batalha se completa com o coturno nas mesmas cores camufladas e sem nenhuma correlação com a paisagem de nossas rodovias, muito menos com o ambiente de tijolo, lajes e becos cimentados da favela em que a operação se realizou.
O NOE é uma força “tática” regionalizada da PRF, que também possui outra tropa altamente treinada, o Grupo de Resposta Rápida (GRR), mas de atuação nacional, especializada (“de elite”) e capaz de atuar em diversos ambientes, equivalente ao Comando de Operações Táticas (COT) da Polícia Federal. Todos esses grupos se assemelham, no tipo de treinamento e atuação, com o BOPE, algo mais fácil de visualizar graças à popularidade que este batalhão ganhou com o thriller dirigido por José Padilha. Essa semelhança não é mera coincidência, pois os batalhões especiais das PMs – cujo tipo de treinamento é inspirado nos fuzileiros navais norte-americanos – oferecem regularmente cursos para os núcleos táticos da PRF em diversos estados.1
Os “soldados” da PRF também estiveram presentes na operação realizada em maio, na Vila Cruzeiro, em que pelo menos 23 pessoas foram mortas, e no ano passado, numa operação contra o “novo cangaço”, em conjunto com a PM de Minas Gerais, que resultou na morte de 25 “bandidos”. Com o episódio conhecido como da “câmara de gás da PRF”, os responsáveis pelo patrulhamento das vias brasileiras estão agora no centro de um debate público sobre suas funções e competências. O argumento comum dos comentaristas na mídia é que ocorreu uma notória ultrapassagem dos limites legais da atuação da PRF, mas a equipe de relações públicas da força policial divulgou nota indicando que portarias assinadas por Sérgio Moro e André Mendonça respaldavam as operações.2 Não há contradição entre as duas posições, já que numa situação de exceção o cumprimento de uma lei anda ao lado de sua própria violação, legalmente amparada: “para aplicar uma norma é necessário, em última instância, suspender sua aplicação, produzir uma exceção”.3
“Desvio de função” não é uma novidade no Brasil e a tensão estabelecida entre os poderes republicanos é apenas uma de suas expressões mais recentes. Entretanto, um dos campos privilegiados da “distorção” de finalidade institucional é o da segurança pública, marcada há décadas por uma militarização crescente em que as funções policiais são progressivamente assumidas pelas Forças Armadas. Esse processo se aprofundou de modo que é difícil agora estabelecer a diferença entre um policial e um soldado.
Um caso simbólico – mas já esquecido diante da sucessão cotidiana de chacinas – foi o do policial Trovão, enaltecido pela mídia há 15 anos durante a chamada “Batalha do Alemão”, numa das infindáveis operações de “retomada” do complexo de favelas, durante os preparativos da cidade para os Jogos Pan-Americanos. Trovão, um inspetor da polícia civil, teve sua imagem divulgada em todo o Brasil, caminhando sobre uma fileira de mortos durante a megaoperação, com fuzil numa mão e charuto na outra, trajando o típico kit de combate mariner minuciosamente analisado pelo infográfico de um jornal pinga-sangue carioca. O policial, cujo desejo era lutar no Iraque, revelava, em capa de outro jornal, sua natureza “tática”: “tenho vocação para ser guerreiro”.4 Lotado então na Delegacia de Repressão a Armas e Explosivos, Trovão nunca realizou seu sonho e acabou preso por envolvimento com o tráfico de drogas,5 mas ficaria como um ícone vulgarizado dessa militarização que transformou o combate ao crime numa verdadeira guerra.
A convergência cada vez maior entre policiais e soldados não é uma peculiaridade nacional. Nos EUA – nossa inspiração em vários aspectos – esse processo está adiantado e fartamente registrado. Por lá, a militarização das forças policiais começou com as respostas violentas aos distúrbios civis da década de 1960 e culminou, durante o governo Nixon, com a célebre campanha de “lei e ordem” construindo o aparato da “guerra às drogas” tal como conhecemos com todas as suas marcas raciais evidentes. Foi nessa época que nasceu uma referência midiática e um símbolo da cultura repressiva norte-americana, a Specials Weapons and Tactics – SWAT (sintomaticamente, o inspetor Trovão tinha curso de formação nessa tropa, assim como na Marinha brasileira). Estavam lançadas as bases para um amplo processo de endurecimento militar do aparato policial:
Hoje, nos Estados Unidos, as equipes da SWAT invadem violentamente casas particulares mais de cem vezes por dia. A grande maioria dessas incursões é para fazer cumprir as leis contra crimes comuns consensuais [consensual crime]. Em muitas cidades, os departamentos de polícia trocaram os tradicionais uniformes azuis por “uniformes de batalha” inspirados em trajes de soldados. Os departamentos de polícia de todo o país agora ostentam veículos blindados projetados para uso em campos de batalha. Alguns têm helicópteros, tanques e Humvees. Eles carregam armas de nível militar. A maior parte deste equipamento vem dos próprios militares.
Muitas equipes da SWAT hoje são treinadas por funcionários atuais e antigos de unidades de forças especiais, como Navy Seals ou Army Rangers. (…) Esse tipo de força já foi reservado como a última opção para desarmar uma situação perigosa. É cada vez mais usado como a primeira opção para apreender pessoas que não são, de modo algum, perigosas.
Existe agora uma cultura militar dominante dentro das agências policiais modernas.6
Mas é preciso enfatizar que o processo de militarização das forças de segurança convencionais não é apenas a sua transformação em tropas de soldados, mas a conversão dos policiais em verdadeiros “guerreiros”. A compreensão cada vez mais naturalizada de que há um envolvimento objetivo numa guerra cria a subjetividade de guerreiro. Como resumiu um chefe de polícia norte-americano, há uma mentalidade militarizada de que “você não é um policial servindo a uma comunidade, você é um soldado em guerra”.7
Por aqui temos um verdadeiro consenso, entre as forças de segurança, seus líderes e membros, de que há uma guerra em curso e policiais devem agir como soldados em batalha – apesar de todo o horror expresso pela chamada opinião pública, a compreensão de que numa guerra “se mata e se morre” é costumeira em nosso quintal. Entretanto, há um aspecto novo nessa longa transformação do policial em soldado: o elogio político oficial da “ética de guerreiro”, agora desapegado de qualquer freio moral. Não por acaso, a primeira manifestação do presidente da República diante da chacina na Vila Cruzeiro foi dar “parabéns aos guerreiros do Bope e Polícia Militar”.8
Mais do que mero “desvio de função” de unidades de segurança, há uma indistinção progressiva entre policiais e soldados com uma ética de guerreiro mobilizada contra o “inimigo”, o que leva à convergência na atuação de forças totalmente distintas – policiais civis, militares, rodoviários etc., todos acabam atuando num campo previamente estabelecido como de guerra.
“Sem retorno”
Esse processo de “ascensão do policial guerreiro” está longe de ser algo recente ou uma política exclusiva do governo brasileiro atual. Oriundo do uso cotidiano das forças policiais militares estaduais, durante a ditadura militar, no combate à criminalidade comum,9 a militarização da “segurança pública” tornou-se há muito uma tendência suprapartidária, como se pode notar com o uso mais sistemático dos próprios militares durante governos considerados “progressistas”.10 A transformação da polícia rodoviária em mais uma das forças de liquidação social não é um mero produto ocasional de portarias assinadas por ministros conservadores que professam um punitivismo radical. Trata-se de um resultado de longo prazo que envolve a militarização do espaço urbano e cuja manifestação superficial é a conversão de todas as equipes estatais de segurança em forças militares. O próximo passo dessa violência militarizada sistemática é a transformação também das guardas municipais em tropas de execução – um deslocamento de função autorizado pelo STF, nosso “guardião da democracia” que também deixa suas digitais na destruição do Estatuto do Desarmamento.11
É claro que o ímpeto de nossas equipes de segurança em “guerrear” é reforçado a cada demonstração de força, audácia e “desaforo” público por parte do crime. Em 2012, depois da saída das Forças Armadas do Complexo do Alemão, ataques sistemáticos contra a sede da Unidade de Polícia Pacificadora de Nova Brasília levaram à morte de uma jovem policial militar. Na ocasião, a presidente Dilma Rousseff demonstrou solidariedade à corporação policial e empenho na consolidação da política de “retomada de territórios”. “A Paz vencerá, não há retorno”, ela declarou. O então governador Sérgio Cabral – hoje encarcerado – chamou tudo de uma “ação terrorista de um grupo perigoso”.12 Fica evidente como jurídica e politicamente são lançadas a cada momento, por lideranças diversas, as condições de legitimação desse revanchismo guerreiro.
As recentes chacinas policiais em áreas favelizadas do Rio, uma década depois, parecem demonstrar que a presumida luta contra o “terrorismo” continua, embora fique evidente que uma parte delas são retaliações diante da morte de agentes de segurança, algo como uma guerra de posições sem fim.13 Meses depois da maior chacina realizada pela polícia, o governo estadual anunciou uma “ocupação” do Jacarezinho e um jornal local trouxe na capa um pelotão inteiro de policiais-soldados empunhando fuzis sob a manchete: “Cidade Integrada para ter Paz”.14 Ao que parece, vivemos uma guerra sem fim pela paz.
Porém, como dito, há algo novo nessa expressão cada vez mais radicalizada da militarização dos conflitos urbanos. Diferente do passado, em que a legitimação da violência policial-militar era oficialmente embalada em discursos de “integração social”, “libertação de territórios” e mesmo do papel da “polícia levando cidadania”,15 os novos ventos da desintegração do Estado brasileiro trazem apenas o elogio oficial da morte e da eliminação sistemática. Mesmo sem respaldo legal do “excludente de ilicitude”, o vaticínio do presidente de que os “bandidos vão morrer na rua igual barata” parece se realizar.16 Mais ainda: a violência oficial legal/ilegal contra os inimigos é gradativamente legitimada por uma ética guerreira em que a guerra se torna um fim em si – resta saber quem são esses inimigos.
O alvo da guerra
Há cerca de 10 anos, um pouco depois da chamada “Guerra do Alemão”, isto é, da ocupação militar das favelas do Complexo, um estudo da Secretaria Estadual de Assistência Social estimou que mais de um quarto dos jovens moradores de comunidades com UPPs não estudava e nem trabalhava. Uma parte desses jovens também não procurava emprego, sequer aparecendo nas estatísticas de participação do mercado de trabalho.17
Pesquisa mais recente, realizada pelo Ibase, entrevistou moradores do Complexo do Alemão entre 2018 e 2020, com o objetivo de produzir indicadores sociais relativos à situação dos jovens. Um levantamento amplo identificou que apenas 61% dos moradores acima de 15 anos estavam trabalhando. Entre os que trabalhavam, 45% atuavam por conta própria, 17% eram assalariados informais e menos de um terço (28%) possuíam carteira assinada. O mais significativo, contudo, é o grau de autorreferência do circuito econômico da própria comunidade: 44% trabalhavam na própria favela ou entorno imediato, 32% nos bairros próximos da Zona Norte do Rio e apenas 6% atuavam no Centro da cidade e mais 6% na Zona Sul. Entre as áreas abordadas na pesquisa estava o local conhecido como Pedra do Sapo, palco da chacina de maio deste ano, enfatizado como área que possui “menos infraestrutura e onde há trechos aos quais não chegam serviços, como coleta de lixo, arruamento e esgoto sanitário”.18 Mais do que a baixa densidade de estruturas básicas, a carência de integração social e econômica é que foi ressaltada com a exclusão desses espaços do “mundo do trabalho formal”19. Uma exclusão econômica com traços raciais estruturais: no Complexo do Alemão, 74% dos moradores são negros (bem acima da proporção em toda a cidade) e 79% de todas pessoas mortas por causas violentas, entre 2010 e 2019, eram negras.20
Diferente de favelas localizadas em zonas centrais e, principalmente, na Zona Sul, as favelas mais afastadas do Rio de Janeiro tornaram-se basicamente territórios com atividades autônomas, voltadas para seu próprio mercado periférico e boa parte de seus moradores vive num cotidiano desconectado economicamente do restante da vida metropolitana.21 Eles não formam mais uma força de trabalho funcional do ponto de vista dos circuitos econômicos corporativos e a maioria sequer é assalariada.22 Trata-se de uma população expulsa do mercado de trabalho, supérflua e que por isso aparece aos olhos do neofascismo em ascensão declaradamente como “descartável”.
O alvo central da “guerra civil molecular” (Hans Magnus Enzensberger) em curso por aqui é a população excluída das zonas urbanas socialmente falhadas, as favelas e periferias. O alvo é o “bandido”, o “vagabundo”, o “pária” dessa sociedade e que está condenado à falência social e à marginalidade – ou seja, aquele que, segundo o discurso neoliberal da autorresponsabilização, é um fracassado por sua própria incapacidade de superar a superfluidade e de se integrar economicamente ao mercado.
A fixação em “vagabundos” como inimigos não é um traço específico do atual quadro conservador brasileiro. Oriundo das forças mais subterrâneas da ética do trabalho moderna, o ódio àquele que presumidamente “não se esforça” e que não trabalha já foi revelado por diversos líderes nacionais, até mesmo vinculados a “partidos progressistas”.23 Isso sempre cria uma vinculação ideológica entre aqueles que foram expulsos da sociedade do trabalho com a criminalidade. Mas a maré neofascista impulsionada pela desintegração social dos últimos anos, no Brasil, tem predileção por demonstrar, agora oficialmente, o seu desprezo ao “vagabundo bandido” (Witzel), àqueles que “não servem nem para procriar” e que são imediatamente associados ao traficante: “um PM quando está em operação mata vagabundo, mata traficante”.24 Se o discurso regressivo estabelece um nexo imediato entre a inutilidade social e “bandidagem”, cabe aos “guerreiros” eliminá-los da face da Terra em nome do “cidadão de bem”. Quando 23 ou 28 pessoas morrem numa chacina policial, todos são imediatamente bandidos, não importa o que façam; todos estão previamente definidos como matáveis diante da mira dos “guerreiros tecnológicos”25 munidos com seus fuzis de uso militar, veículos “pacificadores” e helicópteros blindados.
De nada adianta, contra essa “narrativa”, tentar por meio meramente discursivo demonstrar que não estamos em “guerra” – as imagens eternamente repetidas das operações policiais e militares em favelas parecem indicar objetivamente o contrário. O discurso “progressista” ilustrado de que não há efetivamente uma guerra em curso ignora o quadro de anomia social estrutural e acaba por alimentar o radicalismo de direita, que se engaja também contra essa “ingenuidade ideológica” – a “guerra cultural” regressiva brota da superfície adubada pela “guerra contra os vagabundos”.
Também não adianta insistir, de modo retórico, que não há guerra pois o alvo dessa violência militarizada está longe de formar uma tropa, um grupo organizado ou um projeto insurrecional que ofereça perigo ao establishment – o conflito existe efetivamente porque os soldados recrutados pelo aparato repressivo já estão em batalha. A soleira da paz, nos marcos da moderna sociedade contratual em dissolução, é ultrapassada exatamente no momento em que os sujeitos começam a guerrear – não importa muito se seus alvos reagem organizadamente ou não. Ou seja, na pressuposta forma social capitalista da “guerra de todos contra todos”, a normalidade econômica cotidiana se transforma em guerra de fato quando sujeitos concorrenciais se afirmam como guerreiros. Os novos guerreiros batalham (lutam) contra a queles que não batalham (não trabalham). A violência militarizada se apresenta como o grau avançado do extremismo de mercado contra aqueles que estão à margem deste. (Por Maurilio Botelho em Outras Palavras)
VOZ DO PARÁ: Essencial todo dia!