Política do “deixar morrer”: Chacina em Jacarezinho

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
É aquela antiquíssima história: o Estado só aparece nas favelas através da polícia, e não há quem tenha interesse em mudar isso, mesmo reconhecendo as peculiaridades que o tráfico e as milícias impõem

É comum ouvirmos de alguns, ingenuamente, que não há pena de mortes no Brasil, tendo como referência o art. 5º, XLVII, “a”, da Constituição. Realmente, do ponto de vista estritamente normativo, existe essa vedação constitucional. Entretanto, há uma diferença entre Direito Penal (normativo) e Sistema Penal, que por sua vez envolve as agências encarregadas da aplicação concreta das normas de Direito Penal. Assim, o Sistema Penal brasileiro, por meio de suas agências, não só prevê pena de morte, e ainda as executa com imensa frequência, ignorando por completo as normas positivadas.

No último dia 6 de maio, policiais entraram na Favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, sob o argumento que era necessário o cumprimento de mandados de prisão e de busca e apreensão. Mas não foi isso o que realmente ocorreu. Penso que a palavra “massacre” representa melhor aquele dia 6 do que “chacina”. Foi o maior da história do Rio de Janeiro.

Aqui não há espaço para meras descrições, que já foram feitas minuciosamente pelos veículos de mídia, inclusive com fotos e filmagens feitas instantes após os extermínios. Façamos alguns registros sobre o massacre.

O primeiro registro é que a maioria esmagadora dos homicídios foi feito a queima roupa, verdadeiras execuções sumárias. Foram vinte e oito moradores mortos, e um policial – o que por si só já demonstra que o objetivo da operação não foi cumprir mandado judicial algum. Lembremos que o STF, na ADPF 635, suspendeu incursões policiais em comunidades do RJ, salvo casos excepcionais, informados e acompanhados pelo Ministério Público. Segundo já foi noticiado, a Procuradoria-Geral da República já está ciente e verificará se alguma providência será tomada em função do descumprimento em tese do que foi decidido pelo STF.

Obviamente não ignoro o policial morto, o inspetor de polícia André de Mello Frios, que deve sim ser lembrado pelos seus.

Mas aqui já temos um exemplo da diferença de tratamento: enquanto o falecido policial já foi identificado e sepultado, inclusive com a presença do Secretário de Polícia Civil; apenas três dos 27 moradores executados foram identificados, e faço questão de mencionar expressamente seus nomes: Isaac Pinheiro de Oliveira, Richard Gabriel da Silva Ferreira e Rômulo Oliveira Lúcio. Esses também merecem as lembranças e homenagens dos seus, família, amigos e pessoas próximas. Os outros vinte e cinco também as merecem, mas não foram dignos o suficiente para serem identificados e terem seus corpos entregues para as famílias. Apenas registro que esta coluna foi escrita em 8 de maio, e não se sabe o que ocorrerá até sua publicação. [Somente após dois dias da ação policial que os nomes das 27 vítimas foram divulgados. Veja aqui].

E, com todo o respeito, o subsecretário de Planejamento e Integração operacional, ainda que registrando que foi cumprida a decisão do STF, chega a afirmar que, em razão de um ativismo judicial latente “fomos de alguma forma impedidos ou dificultada a ação da polícia em algumas localidades”.

Este colunista é um crítico do ativismo em matéria penal e processual penal, que, mesmo na realidade das favelas cariocas, possui regras de imputação rigorosas, desde o Iluminismo, para que a restrição a liberdades (especialmente de locomoção) não seja feita de forma arbitrária pelo Estado. E nisto temos que ser rigorosos. A única coisa que o ativismo poderia fazer é enfraquecer as regras constitucionais, como já deu a entender o ministro Luiz Fux em várias de suas manifestações. 

É engraçado porque existe inviolabilidade do domicílio no Leblon, na Barra da Tijuca (a Miami carioca) e nos bairros de classe alta de Belo Horizonte. Mas em outros locais a porta é chutada sem maiores questionamentos, sem flagrante, sem mandado… Como foi dito em coluna da F. de São Paulo, “escrever sobre direitos humanos sendo da periferia às vezes é visto como uma contradição, já que esse assunto que foge da realidade de quem mora nesses locais”. É aquela antiquíssima história: o Estado só aparece nas favelas através da polícia, e não há quem tenha interesse em mudar isso, mesmo reconhecendo as peculiaridades que o tráfico e as milícias impõem.

Para que não nos alonguemos, nossa conclusão é inteiramente retirada da melhor obra brasileira sobre políticas de segurança pública, fruto da tese professor dr. João Ricardo Dornelles, nosso orientador no doutorado (Conflito e Segurança: Entre Pombos e Falcões. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 206-207):

“… uma polícia que tem sua origem lógica dos ‘capitães do mato’ dos períodos colonial e imperial, cumpre a sua parcela na tarefa de reproduzir esse modelo de de sociedade, controlando, vigiando, reprimindo, ao espalhar o terror contra a população mais pobre.  […]

Para estes setores excluídos, a institucionalidade democrática, os princípios de direitos humanos, o exercício da cidadania, não passam de uma formalidade escrita em papeis. Para eles a realidade é a polícia que tortura, que mata impunemente, que desempenha o papel de capataz das elites. Em um país onde as relações entre as classes sociais são historicamente tensionadas e onde nestes últimos dez anos vive-se uma intensa luta hegemônica, passa a existir uma cidadania diferenciada que se manifesta, de maneira exemplar, no tratamento de desprezo dispensado pelas elites e na ação policial brutal, preconceituosa e repressiva contra as classes populares”.

por Michel Reiss

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