Provocações sobre o uso dos termos “negacionismo”, “ciência” e “racismo estrutural”. Hipótese: seu emprego, na forma atual, compõe a ideologia do colonialismo – que, não obstante as diferenças de época, nos condena à inexistência – (Imagem: Descobrimento do Brasil, de Cândido Portinari)
“Existirmos: A que será que se destina?/
Pois quando tu me deste a rosa pequenina/
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina/
Do menino infeliz não se nos ilumina/
Tampouco turva-se a lágrima nordestina/
Apenas a matéria vida era tão fina/
E éramos olharmo-nos, intacta retina/
A cajuína cristalina em Teresina”.
Caetano Veloso, “Cajuína, 1982
A negação da negação imperialista: a dialética
1.
A principal função da ideologia (exercida por nós mesmos, em um mundo alienado como o da civilização do capital) é ocultar a realidade concreta, sobretudo a realidade das relações de produção objetivas, realmente existentes; sem mistificações, tendo em vista, por exemplo, a inserção historicamente submetida do Brasil na economia mundial.
2.
É por isso que devemos evitar palavras e expressões que dizem tudo e não dizem nada. Uma delas, de larga circulação hoje é esta: negacionismo. Supõe-se que o não respeito à ciência seja a senha para ser chamado de negacionista.
3.
Ora, esse tipo de interpretação é vago e constitui no máximo uma meia verdade porque não diz nada sobre realidade concreta, que tem sido, para dialogar com Walter Benjamin de “Sobre o conceito de história” (1944), a do longo período da tradição dos oprimidos do qual somos os miseráveis herdeiros.
4.
E que tradição do oprimido é essa? É a que resultou, como pesadelo histórico, do efeito trágico da passagem das relações escravistas de produção, para as feudais, desembocando no modo de produção capitalista, que se tornou imperialista, a partir de sua fase monopólica, razão pela qual, com Marx O 18 de Brumário de Luís Bonaparte: “Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram” (MARX, 2011, p.25).
5.
Diante desse pesadelo da história e da histórica como pesadelo, o marxismo propõe a negação como parte fundamental do processo dialético. Negar a ordem existente e por extensão as linhas de força da tradição do oprimido é a condição fundamental da luta de classes, tendo em vista a relação inseparável entre identidade e diferença, afirmando esta, a diferença, a partir da negação daquela; da identidade.
6.
O que se nega, dialeticamente falando, é o que deve ser negado: a opressão e seu lastro nas relações socais de produção. O uso do termo negacionismo, para se referir àquelas pessoas que negam a ciência, tem sido, desse modo, um tiro pela culatra, pois além de desqualificar a potência revolucionária da negação da ordem existente, particularidade indispensável da dialética, condena-nos ao retorno a um período pré-hegeliano da história.
7.
Negacionismo sem dialética, isto é, sem identidade e diferença, sem negação do mundo realmente existente e, assim, sem afirmação do novo ( e o novo é o povo disputando o porvir pela luta de classes) sob o ponto de vista da ciência marxista, tem outro nome objetivo: alienação.
8.
E o que é a alienação e quais são sãos efeitos práticos? No livro A sagrada família (1844) Marx e Engels assim se posicionaram a respeito: “A classe possuinte e a classe do proletariado representam a mesma autoalienação humana. Mas a primeira das classes se sente bem e aprovada nessa autoalienação, sabe que a alienação é seu próprio poder e nela possui a aparência de uma existência humana; a segunda, por sua vez, sente-se aniquilada nessa alienação, vislumbra nela sua impotência e a realidade de uma existência desumama” (ENGELS & MARX, 2002, p.48).
9.
Marx e Engels objetivaram o fenômeno da alienação no capitalismo. É a regra por ser o modo específico e imanente de funcionamento da civilização burguesa, tanto pelo fato de o trabalho se alienar de si mesmo, ao ser usurpado pelo capital; tanto no que se refere às relações mercantis, por meio das quais o valor de troca subsume o valor de uso, tanto no que tange à divisão desigual do trabalho entre gênero, etnias e entre países.
10.
Isso significa que, independente do que pensamos, todos somos agentes cientes ou inscientes dos dispositivos de alienação do modo de produção capitalista, com uma diferença fundamental: a alienação dos opressores é a condição objetiva da dominação deles; a dos oprimidos é a condição objetiva da condição dominada deles.
11.
E mais: a alienação humaniza subjetivamente os opressores e desumaniza objetivamente os oprimidos.
12.
Simplificar o mundo atual dividindo-o entre negacionistas (aqueles que não acreditam na ciência) e não negacionistas (aqueles que acreditam na ciência) constitui uma forma objetiva de alienação, além de uma ingenuidade sem tamanho, por partir do princípio de que a ciência seja neutra.
2. O que é a ciência?
1.
O marxismo surge com a seguinte pergunta: o que é a ciência? E não inicia com Marx, mas com Engels, que em 1844 escreveu o ensaio cujo título é: Esboço de uma crítica da economia política, texto em que pôs em suspeição os principais economistas do período, como François Quesnay, Adam Smith e David Ricardo, alegando que a posição de classe deles, como representantes da burguesia, era também o limite científico de ambos, por mais preparados estivessem.
2.
Para o jovem Engels, tanto Adam Smith como David Ricardo não poderiam cientificamente definir a categoria do valor, tempo socialmente necessário para a produção de mercadoria, como mais-valor, isto é, como apropriação privada do tempo de trabalho da classe operária.
3.
E não poderiam porque revelar essa verdade seria desnudar a burguesia, ao evidenciar que esta, sem meias palavras, acumula riqueza sangrando a classe operária.
4.
Com isso o parceiro de Marx concluiu que a ciência para valer, objetiva, tem lado: o da classe operária, dos trabalhadores; o único que, combatendo a opressão, pode objetivar o mundo tal como é e não tal como se suponha que seja.
5.
Desde a Escola de Frankfurt, com Adorno e Horkheimer, por exemplo, consagrou-se o argumento de que saber é poder sobre; que saber é poder/dominação.
6.
A ciência, nesse contexto, passou a ser concebida como processo de conhecimento inseparável da subjugação da natureza e do trabalho.
7.
Michel Foucault partiu do mesmo princípio, embora contemplando a subjetividade humana, como objeto da vontade de verdade do saber/poder/dominação.
8.
Faltou Engels em Adorno, Horkheimer e Foucault, pois é a ciência do capital, a serviço dos donos de meios de produção que é a ciência do saber/poder/dominação. Isso não vale, portanto, para a ciência autêntica, a dos trabalhadores, por ser a ciência que emancipa, inclui, produz-se no comum que somos, para o comum.
9.
Hoje se fala de ciência como se esta não estivesse há muito a serviço, para focar nos últimos 500 anos, do colonialismo, do capitalismo e do imperialismo, respectivamente; como se a ciência dominante não fosse a ciência do saber/poder/dominação colonial, capitalista, imperialista.
10.
Poucos se perguntam, a propósito, que relação têm os tais cientistas ocidentais (que “orientam” os tais protocolos sanitários do atual estado de exceção virótico mundial), com os monopólios farmacêuticos e com o imperialismo.
11.
Não é de negacionistas que devemos acusar os herdeiros do golpe de 2016, que usurpam o poder no Brasil, mas de antinacionais, antibrasileiros e de traidores do povo.
12.
O termo negacionismo é uma importação imperialista e como tal além de antidialético cumpre a função de nos desumanizar, a partir do saber/poder/dominação do ultraimperialismo ianque.
13.
Não temos o mínimo direito de alienar-nos em relação a essas verdades objetivas, que excluem, humilham, desempregam, violentam e matam. E, no nosso caso, em diálogo com o livro O abolicionismo (1888), de Joaquim Nabuco, essa verdade, em sua perspectiva emancipadora, é dialeticamente constituída por dois desafios simultâneos, o da emancipação nacional e o da abolição real e coletiva do eterno retorno dos efeitos coloniais da escravidão – esses dois vetores inseparáveis da ciência do povo brasileiro.
3. Sobre o racismo estrutural
1.
Não faz muito tempo que Biden disse que o racismo nos EUA é sistêmico. No Brasil consagrou-se a expressão “racismo estrutural” para tratar da exclusão negra neste país de fato racista. Mas qual é o erro sério dessas duas expressões? Simples: elas dizem tudo e não dizem nada e com isso não contribuem para entender as causas reais do racismo.
2.
O racismo sistêmico de Biden tem nome: é imperialismo estadunidense. Sem eliminar este não se elimina o racismo sistêmico estadunidense.
3.
O racismo estrutural brasileiro existe, em diálogo com Nelson Sodré de A ideologia do colonialismo (1963) porque não rompemos com a estrutura econômica colonial, que tem nos condenado a ser o objeto, sucessivamente, do racismo colonial europeu e do racismo colonial do imperialismo estadunidense.
4.
Sem rompimento com a estrutura colonial da economia brasileira o racismo persistirá inevitavelmente porque a estrutura de dependência econômica, cultural e política, em relação a uma metrópole, qualquer que seja, retroalimenta sem cessar a ideologia do colonialismo e com esta o racismo, como salientou de forma exemplar Nelson Werneck Sodré no seguinte fragmento de seu livro tela: “A ideologia do colonialismo começa a aparecer quando a expansão europeia se define nas descobertas ultramarinas […]. Mantida a estrutura colonial de produção, tais países deixam de gravitar em torno de suas metrópoles antigas, para gravitar em torno de outras, não tituladas assim, que regulam o seu desenvolvimento econômico” (SODRÉ, 1961, p.8).
5.
A ideologia do colonialismo é a base objetiva do racismo estrutural e este é inseparável de uma estrutura colonial econômica.
4. Sobre o uso da palavra genocídio
1.
Genocídio é outra palavra que diz tudo e não diz nada. É preciso contextualizá-la historicamente, pois somos herdeiros de um povo continuamente “genocidado”: o indígena, o negro e o da classe trabalhadora brasileira de modo geral, superexplorada e desumanizada pela trans-histórica aliança estrutural entre a oligarquia com o sistema de saqueio internacional do Ocidente. Este, como se sabe, já teve como epicentro, Portugal, no período colonial escravista; a Inglaterra, à época protocapitalista do Brasil do século XIX; e os Estados Unidos, há mais de 100 anos.
2.
Acusar o desgoverno Bolsonaro de genocida de modo algum objetiva o nosso desafio histórico, que é o de romper com a aliança entre a oligarquia e o imperialismo, motivo fundamental do genocídio de centenas de milhares de brasileiros genocidados pela pandemia causada pelo vírus do Covid-19.
3.
É preciso objetivar e historicizar sempre, pois, novamente com Marx e Engels, de A ideologia alemã (1846): “Conhecemos uma única ciência, a ciência da história (MARX; ENGELS, 2007, p.86).
4.
Se Bolsonaro é genocida, o é porque está proibido de governar. Sua função, como representante da golpista oligarquia “brasileira” é a de destruir não as esquerdas apenas, mas, sim, a nós, os brasileiros, este povo planetário que depende da existência do Brasil, como Estado-nação soberano, para que também possa existir plenamente, uma vez rompida a estrutura colonial de produção.
5.
Do contrário, como de forma perspicaz versificou Carlos Drummond de Andrade no poema “Hino nacional”, do livro Brejos das Almas, de 1934: “Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?” (DROMMOND, 2001, p.40).
6.
“Brejo das almas”, título do segundo livro de poemas de Drummond, é uma referência a um município de Minas Gerais, onde, segundo o próprio poeta, “os cereais são cultivados em maior escala. Sua exportação é feita para os mercados de Montes Claros e Belo Horizonte” ( DRUMMOND, 2001, p.15).
7.
É, pois, um logradouro agrário-exportador, representando, assim, o próprio país.
8.
O Brasil tem sido um “brejo das almas” de colonizadores do passado e do presente. É por isso que no poema “Hino nacional”, repetindo o estribilho “Precisamos descobrir o Brasil”, o eu-lírico descreve, na primeira estrofe, um país pré-adâmico, para, nas estrofes seguintes, esboçar, sempre ironicamente, o processo de constituição da sociedade brasileira como uma mera transplantação cultural da metrópole.
9.
É nesse sentido que o Brasil e nem os brasileiros existimos no interior da ideologia do colonialismo, efeito objetivo de uma estrutura colonial de produção.
10.
O que tem nos genocidado, assim, está na relação direta com o fato de não nos assumirmos como brasileiros, razão principal de nossa condição de vidas nuas, para dialogar com uma categoria cara ao filósofo italiano Giorgio Agamben, que assim a define, a vida nua: “Não se poderia dizer de modo mais claro que o fundamento primeiro do poder político é a uma vida absolutamente matável, que se politiza através de sua própria matabilidade” (AGAMBEN, 2007, P. 96).
5. Sobre a vida nua brasileira
1.
O recorte apresentado acima do livro Homo sacer: o poder soberano e a vida nua (2002), de Giorgio Agamben, foi o escolhido porque também a categoria de vida nua do filósofo italiano é ela mesma um dispositivo que diz tudo e não diz nada e é por isso que é preciso objetivá-la, historicizando-a.
2.
Assim, se “o poder político” advém, no Ocidente, de “uma vida absolutamente matável, é porque, seja no período colonial, seja no capitalista, seja na fase imperialista da civilização burguesa, a política, isto é, a condição mesma de existência das instituições ocidentais, organizou-se e organiza-se a partir da matabilidade da vida nua de brasileiros, de latino-americanos, de africanos, dos, enfim e sobretudo, trabalhadores superexplorados do planeta.
3.
Rendidos ao imperialismo estadunidense, como milicianos da Doutrina Monroe de 1823, os integrantes do desgoverno Bolsonaro, a começar deste mesmo, funcionam como o preposto da matabilidade da condição histórica de vida nua dos brasileiros.
4.
O golpe de 2016, ainda vigente, constitui, para nós, brasileiros, não a politização da condição de vida nua do povo brasileiro, mas a institucionalização do processo de policiamento da matabilidade da soberania nacional e, por extensão, do brasileiro.
6. O Brasil é a-mulher
1.
Se, para Drummond de Hino nacional o Brasil não existe como “brejo das almas”, que relação teria esse não existir, como país, com a seguinte passagem de O Seminário, livro 23: o Sinthoma, do psicanalista francês Jacques Lacan “[…] A-mulher da qual se trata não é um outro nome de Deus e é por isso que, como eu disse muitas vezes ela não existe” (LACAN, 2007,p.14).
2.
Para Lacan o sujeito se produz no vazio do Outro. O sujeito, assim, não existe porque o Outro, grafado com “O” maiúscula, é o mundo realmente existente; o mundo fálico, o mundo como falo. Essa é a razão pela qual a A-mulher, determinada pelo A maiúsculo, não existe, porque ela só pode existir como sujeito, a partir do vazio do existente, forçando-se e inventando-se, na contramão do instituído, em diferença dialética.
3.
O Brasil é a-mulher, determinado pelo “a” minúsculo. Jamais existirá como costela de Adão de uma Metrópole, como não existiu quando esta era Lisboa, quando se tornou Londres e quando passou a ser Washington.
4.
No Seminário 20: mais ainda, Jacques Lacan afirmou que o gozo do homem é o gozo do idiota e o de a-mulher seria, por sua vez, divino. O que quis dizer com isso? Primeiro: que não somos seres completos, mas de falta. Segundo: que o pênis pode engendrar a ilusão (véu da alienação), no homem, de que este seja inteiro, não lhe faltando nada. Terceiro: que o verdadeiro gozo é o que advém à falta, como potência dialética em relação à ordem existente.
5.
Para existirmos, como sujeitos, hoje, estamos na obrigação de abandonarmos os falos do imperialismo estadunidense, lançando ao lixo da história o uso insciente de palavras e expressões como negacionista, usurpação da negação dialética; ciência, na pressuposição de que esta represente igualmente tanto os opressores como os oprimidos; racismo estrutural, por ocultar o fato de que o problema objetivo do racismo deriva da estrutura de dependência da sociedade brasileira.
6.
Enfim e em começo, ser “costela de Adão” do ultraimperialismo estadunidense tem sido a nossa condição, não de sujeito, esse vazio de a-mulher, mas de assujeitados gozando como idiotas uma nova versão, geralmente fetichizada, da ideologia do colonialismo; a mesma, não obstante as diferenças de época, que nos condena a não existir.
Referências:
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2002.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Brejo das Almas. Rio de Janeiro: Record, 2001.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Versão brasileira de M. D. Magno. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: o sinthoma, (1975-1976). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Trad. Sérgio Laia. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2007.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2007.
ENGELS, Friedrich & MARX, Karl. A sagrada família. Trad. Marcelo Backes. São Paulo: Boitempo, 2003.
MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luis Bonaparte. Trad.: Nélio Scheneider. São Paulo: Boitempo, 2011.
NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. São Paulo: Nova Fronteira, 2000.
SODRÉ, Nelson Werneck. A ideologia do colonialismo.2.ed.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
por Luis Eustáquio Soares na coluna Descolonizações | Outras Plavras