Privatização da Eletrobrás: apagão em meio às trevas

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Exame de um crime. Ao entregar estatal a especuladores, privatização aprofundará distorções do sistema elétrico. Lógica do lucro máximo despreza populações e natureza e extorque usuários para favorecer oligopólios. É preciso interrompê-la

Justo quando o Brasil atingiu a terrível marca de mais de meio milhão de vítimas de Covid-19 por irresponsabilidade do governo genocida e seus apoiadores, foi aprovada pelo Congresso Nacional a lei que autoriza a privatização da Eletrobras. Como fazem na dominação de territórios, milicianos assaltaram as instituições para destruí-las. Aliados a golpistas e controladores do poder político e econômico garantem a implementação de seu projeto fascista e entreguista, para a total colonização de tudo que resta. Eles têm pressa, e não começaram hoje.

O golpista Michel Temer abriu as porteiras da nova era de privatizações do Brasil. Sua breve passagem como o chefe do Executivo brasileiro é marcada por uma guinada silenciosa porém letal na natureza jurídica das empresas públicas do país. Essa guinada é feita por medidas discretas, como a retirada da cogência [obrigatoriedade] de determinados pareceres requisitados por lei complementar ou outro mecanismo legal específico. Por exemplo, durante a [indi]gestão Temer, uma alteração sutil e devastadora dos Planos Decenais de Expansão de Energia passa sem alarde: o Plano Decenal de Expansão de Energia (PDE17) 2017-2026, diferentemente dos oito PDEs lançados anteriormente, retira o caráter cogente-diretivo do documento, enfatizando o caráter meramente informativo dos planos decenais. A retirada da função diretiva como atributo e exercício da função de planejamento energético do Ministério de Minas e Energia – MME por meio do Conselho Nacional de Políticas Energéticas – CNPE e da Empresa de Pesquisa Energética – EPE é o meio do caminho para a privatização. Isso facilita a alteração de planos e a tomada de medidas rápidas que estejam mais vinculadas às flutuações de mercado. A principal consequência desses desmontes é o gérmen do sui generis fascismo-entreguismo do governo Bolsonaro.

Há muitos motivos por trás dessa urgência em abrir mão da Eletrobras. Ao cair atirando, a gangue que derrama sangue, seiva e lama pelo país pretende fazer o maior número possível de transações econômicas antes da aguardada prisão dos integrantes da familícia. Privatizar a Eletrobras é fundamental para a estruturação de um projeto de “retomada da economia no pós-pandemia”. Os liberais que rondam a cadeira presidencial mal podem esperar para implementarem suas cínicas políticas de austeridade pelo “desenvolvimento econômico do país”. E é claro que precisa de energia e infraestrutura pra isso. Mas por que a Eletrobras?

O Brasil é o maior produtor e distribuidor de energia elétrica da América Latina, ocupando a quinta posição no ranking internacional dos países mais represados ​​(CIGB 2018). O país é responsável pelo fornecimento de eletricidade, petróleo e gás a alguns dos países vizinhos da América do Sul (Eletrobras 2016).

Ademais, o Brasil é um grande player no setor elétrico global. De acordo com a EPE em seu Anuário Estatístico de Eletricidade (MME e EPE 2018), no ano-base de 2017, o Brasil é classificado como o sétimo maior consumidor de eletricidade do mundo, o oitavo do mundo em capacidade instalada de geração de eletricidade, e ficou em terceiro lugar no mundo em geração de hidroeletricidade. A tabela abaixo traz o ranking da Aneel das maiores empresas de geração de energia elétrica do Brasil.

A maior empresa de geração de energia elétrica do Brasil é a holding Eletrobras. Da mesma forma que a Petrobras, as ações da Eletrobras são negociadas no mercado internacional. A estrutura acionária da empresa é dividida em ações ordinárias e preferenciais, configurando o capital social total da empresa. O governo federal brasileiro possui 51% das ações ordinárias, o mínimo necessário para tornar a Eletrobras uma empresa pública brasileira. O governo federal não possui ações preferenciais.

1– Ações Ordinárias Eletrobras. Fonte: Eletrobras 2019
– Ações Preferenciais “B” Eletrobras. Fonte: Eletrobras 2019.

A propriedade do capital da Eletrobras reflete, no padrão de propriedade, sua natureza como empresa do setor privado vital e organicamente ligada aos mercados de capitais internacionais, com suas ações livremente negociadas nos mercados internacionais. O governo federal detém 41% do capital social da empresa e os outros 59% são divididos entre vários tipos de bancos de investimento, acionistas privados, corretores financeiros e assim por diante.

Isso ilustra que, apesar de o Brasil possuir empresas de destaque no negócio transnacional de energia, historicamente é dependente da internacionalização do capital. Como um reflexo da configuração de poder do sistema-mundo moderno-colonial, o Brasil é rico em recursos naturais e explora esse potencial, mas está acorrentado ao monopólio financeiro transnacional. A privatização do que resta das ações ordinárias da Eletrobras é a entrega de qualquer controle estratégico sobre a empresa.

As maiores empresas de geração de energia elétrica do Brasil estão no negócio de hidroeletricidade. De acordo com a EPE, a energia hídrica responde por 63% do total de eletricidade produzida no país (MME e EPE 2018, 58).

No topo da lista das maiores hidrelétricas estão Chesf, Furnas, Eletronorte e Norte Energia. A Chesf é uma subsidiária da Eletrobras, operando a maioria de seus empreendimentos de geração na região Nordeste do Brasil, e também é acionista da grande barragem hidrelétrica de Jirau (3.750 MW de capacidade instalada) na região Norte, estado de Rondônia, o maior empreendimento da Chesf. Furnas também é uma subsidiária da Eletrobras, operando negócios de geração hidrelétrica em todo o país, sendo a maior delas a hidrelétrica de Santo Antônio (3.570 MW de capacidade instalada), em Rondônia. A Eletronorte também é uma subsidiária da Eletrobras e seu maior empreendimento é a usina hidrelétrica de Tucuruí (8.300 MW de capacidade instalada) no estado do Pará. A Norte Energia é uma concessionária formada a partir de parcerias público-privadas para a construção e operação da grande hidrelétrica de Belo Monte, a maior hidrelétrica do país com capacidade instalada de 11.200 MW, localizada na área de proteção do Parque Nacional do Xingu, no Pará.

Grande produção de hidroeletricidade significa grandes represas construídas em áreas onde produzem profundos impactos, como a região Norte do Brasil, que compreende uma extensão da Amazônia brasileira. A região Norte responde por 16% da produção total de eletricidade do país. É a maior região do Brasil em extensão territorial e a menos povoada. A indústria é o maior consumidor de energia elétrica da região Norte, respondendo por 44% do total, enquanto o consumo residencial é de 27,5% da produção total (MME e EPE 2018, 89).

Para entender a problemática da construção de grandes hidrelétricas (ou o represamento) na região Norte, vamos observar de perto como os planejamentos de energia lidam com a questão. O Plano Decenal de Expansão de Energia 2015-2024 (PDE15), por exemplo, cita os projetos aprovados para a construção de grandes barragens hidrelétricas na região amazônica como coisas muito positivas (MME e EPE 2015, 82–86). O plano informa que a energia hidrelétrica produz ‘energia limpa’ (MME e EPE 2015, 392-94), ou seja, causa impacto ambiental mínimo e permite uma pegada de carbono positiva de acordo com os padrões internacionais de emissões de gases. O PDE15 ‘celebra’ a expansão da hidroeletricidade para atender às emissões de carbono desejadas.

O argumento é conhecido: para atender às expectativas de demanda por eletricidade e de crescimento industrial, é necessária a construção de mais usinas de grande capacidade. Se a demanda de eletricidade não for atendida, haverá um colapso econômico (MME e EPE 2015, 14-15; 25). A demanda vem principalmente da indústria, do agronegócio e do setor de serviços. O plano deixa claro que, para viabilizar a construção de mais hidrelétricas na Amazônia, é preciso mais investimentos no setor de infraestrutura.

Trata-se de um conjunto de argumentos cuidadosamente elaborados para induzir, justificar e estimular o represamento da região amazônica. Tais argumentos são insustentáveis ​​quando confrontados com as desvantagens desse projeto. Os piores problemas são socioambientais, intrinsecamente ligados a questões econômicas, estratégicas e políticas.

A primeira questão é o deslocamento de pessoas. Comunidades indígenas e suas terras tradicionais têm sua existência ameaçada quando forçadas a serem realocadas. As comunidades ribeirinhas e a população das aldeias são removidas, às vezes à força, para precárias acomodações provisórias feitas às pressas. Essas estruturas são depois transformadas em permanentes, já que depois de realocadas essas comunidades não serão mais um problema para a instalação do empreendimento.

Para inundar a área do reservatório, grandes extensões de terra devem ser desmatadas e, novamente, como essas obras são realizadas na urgência do cumprimento dos prazos contratuais, algumas áreas são ignoradas, o que causa a eutrofização do lago. Milhares de espécies vegetais e animais são ameaçadas de extinção. Os lagos das represas emitem gás metano, e quanto maior o lago, maior o dano ambiental (Fearnside 2009; Millikan 1992; Moreira e Millikan 2012; Hurwitz et al. 2011).

Do lado econômico estratégico, pesquisadores argumentaram que as barragens hidrelétricas na Amazônia produzem eletricidade para indústrias específicas (clientes específicos) e, embora a eletricidade fosse distribuída para uma região inteira, um único cliente muitas vezes justifica a viabilidade de instalação de uma usina. A ultrapoluente indústria de alumínio, por exemplo, é a maior consumidora de eletricidade na região amazônica (Fearnside 2016). Isso mostra que os benefícios potenciais das grandes barragens não se destinam à comunidade, mas à indústria.

A ideia de que a construção de grandes barragens gera empregos e estimula a economia regional também é falsa. A construção de barragens pode criar empregos sazonais durante a fase de construção, mas todo o pessoal terá que encontrar outros empregos quando o trabalho de construção for concluído. Isso cria um pico ou aumento transitório nas aldeias e cidades próximas ao canteiro de obras, o que não traz infraestrutura e desenvolvimento adequados. As cidades ficam superpovoadas, comprometendo os sistemas de água e esgoto e o fornecimento de alimentos e medicamentos (Neto 2014). O perfil dos trabalhadores, os barrageiros, é em sua maioria de homens, longe de suas famílias, vivendo sozinhos em acomodações precárias, com possibilidades limitadas de visitar suas casas ou de ter acesso a esportes ou entretenimento. Sua renda e estilo de vida não permitem que comprem imóveis e tenham estabilidade na região. Eles vivem em um regime semiconfinado para aproveitar a oportunidade de economizar algum dinheiro para enviar de volta para casa. Essas condições de vida tornam esses homens mais propensos a fazer uso problemático de álcool e outras drogas, a agirem com violência e a serem expostos a doenças de confinamento, como doenças virais que se espalham rapidamente em alojamentos de milhares de pessoas (Ribeiro e Corrêa, 2018). É comum haver rebeliões contra essas condições de vida e de trabalho, como o protesto em que trabalhadores incendiaram as acomodações em um canteiro de obras da Camargo Corrêa (Setti 2012). Esses trabalhadores vivem em loop, esperando o próximo empreendimento para terem a oportunidade de um emprego.

Ao lado do negócio de geração de energia elétrica existem dois negócios essenciais para garantir que a eletricidade chegue ao consumidor final: transmissão e distribuição. A transmissão geralmente está relacionada à geração, pois o alcance da energia elétrica ao consumidor final faz parte da viabilidade do empreendimento. Assim, as maiores empresas de transmissão de energia elétrica do Brasil fazem parte das participações acionárias da Eletrobras, a saber, Eletronorte, Chesf, Furnas e Eletrosul. Mencionemos brevemente pelo menos duas questões problemáticas com as linhas de transmissão: a necessidade de servidões permanentes e a eficiência da transmissão de energia.

As negociações para o uso da faixa de transmissão ocorrem de forma desproporcional quando se comparam as abordagens a pequenos proprietários de terras, indígenas, quilombolas e ribeirinhos, às abordagens a ricos proprietários do agronegócio, conforme exposto pelo Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB (IPEA 2014). Enquanto os povos pobres e tradicionais são deslocados, os proprietários de terras ricos obtêm concessões de longo prazo pelo direito de uso de suas terras.

Quanto à eficiência, o Sistema Elétrico Brasileiro – Sistema Interligado Nacional (SIN) – informa que as linhas de transmissão de energia elétrica incorrem em perdas técnicas de 19,2% (MME e EPE 2018, 69), ocorrendo entre a energia elétrica gerada nas usinas, passando pelas linhas de transmissão e distribuição de redes para chegar ao consumidor final (Bermann 2004; 2003). Na região norte, as perdas são de 28% (EPE 2018, 69–70). Quanto maior for a usina, mais longe estará dos centros urbanos, residências e hospitais. Quanto mais distante a usina, mais longas serão as linhas de transmissão e maior será a perda.

Assim, a construção de grandes barragens, conforme evidenciado no exemplo aqui analisado – a região Norte do Brasil, incluindo a região amazônica – não contribui para o desenvolvimento local ou benefícios reais para o país em geral. Pode gerar indicadores econômicos de crescimento econômico, conforme previsto nos planos energéticos. Dessa forma, os empreendimentos de energia tendem a refletir mais positivamente em termos de indicadores financeiros globais do que em termos de qualquer melhoria das condições de vida no país, tampouco nas localidades onde estão instalados esses empreendimentos.

O negócio de eletricidade também envolve a distribuição aos consumidores finais. Não vamos nos aprofundar no negócio de distribuição, mas é interessante destacar a estrutura corporativa da distribuição de energia elétrica no Brasil para determinar os aspectos geopolíticos do planejamento energético no Brasil.

O negócio de distribuição é majoritariamente detido por empresas privadas, contabilizando 71% das distribuidoras de energia elétrica no Brasil. As maiores empresas são grupos de investidores, com ações negociadas em mercados internacionais, sejam empresas públicas ou privadas. As maiores empresas privadas são: o Grupo Energisa, majoritariamente composto por investidores brasileiros (capitalistas financeiro-rentistas), mas com ações negociadas no mercado internacional; o Grupo Enel, originalmente italiano; o grupo CPFL, subsidiária da estatal chinesa State Grid; o grupo Neoenergia, subsidiária da espanhola Iberdrola; e a EDP Brasil, subsidiária do grupo português EDP. As maiores empresas de capital aberto são as subsidiárias da Eletrobras, concentradas na região Norte do Brasil, e o grupo CEMIG na região Sudeste, todas entidades de capital aberto, negociadas nos mercados financeiros internacionais.

Existem duas razões principais para listar as empresas do setor de energia elétrica e sua estrutura acionária para explicar as especificidades da posição geopolítica brasileira no negócio global de energia. O primeiro motivo está relacionado ao grande potencial de fontes de energia que atrai uma série de investidores estrangeiros para o país. A segunda razão é o fato de que o capital é transnacional, financeiro, e visa apenas mais capital, independentemente dos meios para produzi-lo.

A grande maioria das empresas do setor de energia atua em mercados transnacionais, o que não vincula o futuro do negócio ao desenvolvimento local. O dinheiro não fica onde o insumo de energia é obtido. Os lucros em negócios arriscados como petróleo e eletricidade são altíssimos, mas a tributação é baixa, mesmo quando grandes lucros são realizados. Isso impõe uma contradição flagrante no Brasil: embora o território seja rico, as populações que vivem no território e trabalham nessas empresas são geralmente pobres, vulneráveis ​​e oprimidas. Isso ocorre porque a energia no Brasil não é produzida para diminuir as disparidades sociais / territoriais / econômicas.

A energia no Brasil é produzida para a rentabilidade dos negócios transnacionais.

Apesar de o Brasil ser ser um ator-chave no negócio internacional de energia, o planejamento energético brasileiro reforça a posição periférica do país na economia global.

O caráter financeiro transnacional dos negócios de energia efetivamente leva à transferência das “dores” da industrialização das nações ricas do Norte Global para o Sul Global. É uma continuação dos métodos coloniais de rentabilidade, com envolvimento mínimo com o território e as comunidades.

Todas as empresas listadas aqui operam em mercados internacionais, gerando dinheiro por meio de investimentos, especulações ou venda de ativos intangíveis em transações online. Comprar uma participação da Eletrobras, Petrobras, Energisa ou Royal Dutch Shell nada tem a ver com desenvolvimento local.

Os acionistas não precisam saber sobre as comunidades deslocadas, a falta de água encanada ou o caráter sazonal dos empregos criados nas grandes empresas (que acabarão gerando desemprego no devido tempo). Tudo o que os acionistas precisam saber é o lucro líquido e a parcela dos dividendos. O caráter financeiro transnacional das empresas de energia é global. O Brasil carrega a contradição de ser o nono maior produtor de petróleo do mundo, o oitavo maior consumidor de eletricidade do mundo, e ser um país líder mundial em desigualdades socioeconômicas. Esta é uma imagem da divisão de trabalho do sistema-mundo moderno-colonial e da transferência geopolítica dos danos ambientais dos ricos para os pobres.

Não há nenhum benefício na privatização da Eletrobras. Existem contos ou imaginações liberais, para citar a expressão cunhada por Radha D’Souza em seu livro O que está Errado com os Direitos? (2018). Nessas imaginações, prega-se uma lista de ditos benefícios que devem ser contrapostos à realidade histórica das privatizações no Brasil e América Latina.

A privatização do setor elétrico no Brasil

As decisões sobre estratégias energéticas de longo prazo no Brasil são de responsabilidade do Poder Executivo, ou seja, o endosso final de tais decisões compete à Presidência da República. Como uma das instituições diretivas que compõem o Poder Executivo e dão a legitimidade necessária às decisões políticas, o Ministério de Minas e Energia – MME tem a função de apoiar a Presidência no planejamento e nas diretrizes do setor de energia (Brasil 1960). A mesma lei que implementou o MME também incorporou algumas das mais relevantes instituições estratégicas em matéria de soberania, como o Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM e instituições já extintas, como o Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica, o Conselho Nacional de Mineração e Metalurgia, o Conselho Nacional do Petróleo e o Comitê de Exportação de Materiais Estratégicos. Além disso, as empresas ligadas à comercialização de insumos energéticos, como Petrobras (petroleira), Chesf (empresa de geração e transmissão de energia elétrica, que passou a fazer parte da holding Eletrobras), Companhia Vale do Rio Doce (a mineradora, privatizada em 1998 durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso) (Jr 2013) estavam legalmente sob o guarda-chuva institucional do MME.

As décadas que se seguiram à criação do MME foram marcadas pelo golpe civil-militar que instalou um regime militar ditatorial no Brasil, no contexto da instabilidade política internacional da Guerra Fria. A ditadura perdura de 1964 a 1985, quando o país começa a caminhar para a democracia. Um ano após a promulgação da Constituição
Federal de 1988, Fernando Collor é eleito presidente da república. Embora Collor não tenha completado seu mandato, seu governo foi marcado pela introdução do Brasil como um país neoliberal no cenário econômico internacional, amigo da agenda política norte-americana de ‘democratização’, abertura de mercados e legitimação dos reguladores financeiros internacionais (Hirst e Pinheiro 1995). Apesar de a agenda neoliberal parecer contrária ao discurso nacionalista de desenvolvimento econômico dos militares, a importância econômica e política dada às elites industriais e de infraestrutura após a democratização permaneceu a mesma que era sob o regime militar (Campos 2012). O novo período democrático foi uma desculpa para a venda de empresas públicas, aplicando o discurso que vinha sendo difundido por instituições econômicas internacionais como o Banco Mundial e o FMI (Anderson 1995), para ‘levar desenvolvimento ao Terceiro Mundo’.

A advocacia para a liberalização de mercados e abertura para investimento estrangeiro direto no Sul Global culminou na agenda neoliberal após a derrubada do bloco socialista. A década de 1990 foi marcada por intensas pesquisas, principalmente com patrocínio de instituições privadas, para novas tecnologias energéticas e, principalmente, para entender a dinâmica do mercado, a regulação dos mercados e os fluxos transnacionais de capital. Trazendo exemplos de nações exportadoras de capital como o Reino Unido, Helm afirma que os negócios do complexo industrial de eletricidade foram reestatizados no começo dos anos 2000, uma vez que investidores substituíram investimentos em energia nacional por serviços financeiros e outras atividades intensivas, alegando o problema de eficiência energética e volatilidade dos preços de energia elétrica (Helm 2007, 10). Os investimentos em energia elétrica passaram a ser percebidos como de alto risco, minimamente lucrativos e com preços muito voláteis nos grids, o que trouxe de volta a figura do Estado para lidar com o problema. Isso ocorreu, dentre outros fatores, em função da cláusula de limite de preço para serviços essenciais, que Estados devem incluir em contratos firmados com as empresas que executam tais serviços. Essa cláusula de modicidade de preço é um mecanismo de garantia judicial de que a população, em tese, teria acesso a serviços essenciais até determinado valor compatível com a renda mínima per capta. Quando o preço da venda de energia elétrica para o consumidor final não mais correspondeu à taxa interna de retorno do empreendimento, os investidores preferiram “devolver” o negócio.

No Brasil, os movimentos de privatização da década de 1990 aplicaram estratégias que também puderam ser observadas na privatização de outras empresas públicas na América do Sul, algo fortemente incentivado por instituições internacionais (Banco Mundial 1998) e economistas liberais. Tal estratégia foi reunir estudos científicos para embasar e legitimar o discurso sobre a ineficiência do Estado, depois reduzir os investimentos públicos, sucateando as empresas públicas até que seu valor comercial diminuísse a ponto de a possibilidade de vendê-las parecer um negócio melhor para os cofres públicos (Benjamin 2001). Dessa forma, a população estaria convencida de que a propriedade estatal de empresas estratégicas estava ‘travando o desenvolvimento observado no Reino Unido e nos Estados Unidos’ (Mattos e Coutinho 2005; Pêgo Filho, Cândido Júnior e Pereira 1999). Foi o caso de empresas do setor de energia.

Na América Latina, os exemplos de privatização de serviços essenciais resultaram em grandes perdas sociais, econômicas, ambientais e políticas. Diferentemente do que se deu no Reino Unido, a privatização de serviços essenciais na Bolívia nos anos 2000 teve desfecho catastrófico, levando o governo boliviano a ser réu numa arbitragem internacional na ICSID – o tribunal do Banco Mundial para soluções de disputas entre Estados e investidores atrelados a empréstimos do banco. A disputa surgiu da suposta violação, pelo governo da Bolívia do contrato que mantinha com a empresa de infraestrutura Águas del Tunari, subsidiária da gigante norte-americana Bechtel Corporation. O contrato era um acordo de longo prazo para instalação e operação de sistemas de água e esgoto na cidade de Cochabamba, projeto financiado pelo Banco Mundial em um esquema denominado Programa de Ajustes Estruturais (SAPs). O governo boliviano interrompeu o contrato depois de alguns anos de revoltas massivas contra a companhia de água em Cochabamba. A população protestava contra o fato de o preço da água ter aumentado mais de 50% e, por cláusula contratual, a população não poder armazenar água da chuva ou perfurar poços artesianos. Como a água se tornou inacessível, as pessoas em Cochabamba começaram a armazenar água “ilegalmente”, o que acabou sendo severamente reprimido pela polícia. Quando o poder público passou a proteger abertamente a empresa em detrimento da população, a situação piorou. Os protestos tornaram-se maiores e mais violentos, levando ao assassinato do estudante de 17 anos Victor Hugo Daza pela polícia, em abril de 2000. Essa série de eventos ficou conhecida como a Guerra da Água. A população de Cochabamba foi representada por La Coordinadora, uma coalizão de movimentos sociais com suporte em movimentos de base e coalizões internacionais pelo direito à agua potável, que pressionaram pela interrupção do contrato de concessão e a expulsão da multinacional do país. A disputa arbitral perdurou até 2006, quando os investidores da subsidiária retiraram o pleito no valor de 40 milhões de dólares contra o governo boliviano, afirmando não terem nenhum tipo de culpa no caso do assassinato de Daza.

O exemplo da Guerra da Água de Cochabamba evidencia a disparidade entre as prioridades do capital transnacional e as necessidades primárias das pessoas. Ao passo que o Banco Mundial advogava pelos “ajustes estruturais”, o fim da década de 1990 no Brasil é marcado por uma série de medidas regulatórias para permitir a privatização progressiva de setores estratégicos da economia. Em 1997, com a promulgação da lei n. 9.478, foram definidos os princípios e objetivos das Políticas Nacionais de Energia, bem como a regulamentação nacional para o uso racional de fontes de energia. Essa lei também criou o Conselho Nacional de Política Energética – CNPE, instituição de referência em planejamento energético no Brasil. O aspecto mais importante dessa lei, porém, é a definição do monopólio de petróleo e gás natural e a criação da Agência Nacional do Petróleo – ANP, autarquia criada com o objetivo de atrair novos investimentos em busca de novas reservas nas bacias sedimentares brasileiras (Lucchesi 1998). Embora a ‘Lei do Petróleo’, como ficou conhecida, reivindicasse independência energética e suficiência de abastecimento do país, incentivou fortemente o setor privado a aproveitar os potenciais energéticos do Brasil, o que beneficiaria principalmente os negócios de infraestrutura e capital internacionalizado.

O projeto de privatização no Brasil tinha o compromisso central de transferir ao capital privado todo o setor de infraestrutura, que englobava telecomunicações, energia e transporte. Alguns consideram a venda da Companhia Vale do Rio Doce, em 1998, um dos maiores erros estratégicos da história econômica do país (Ribeiro Jr 2013; Zorzal e outros 2004; Biondi 2014; Affonso 2000).

A dedicação política para privatizar o setor de energia por meio do enfraquecimento e sucateamento de empresas estatais tornou a função de planejamento do MME menos importante do que o impacto da taxa de retorno da venda de cada uma de suas empresas na bolsa de valores. Tal conjectura culminou na pior crise de eletricidade da história do Brasil, ainda durante o governo de FHC – os ‘apagões’. A deficiência no fornecimento de energia elétrica materializada no ano de 2000 com a ocorrência de apagões foi consequência do descompasso entre o aumento do número de consumidores e a falta de expansão da capacidade instalada de produção e transporte de energia (Tolmasquim 2000). A primeira década do século XXI foi marcada por campanhas de racionamento de energia nacional, na tentativa de transferir para a população – consumidores residenciais – a responsabilidade e o ônus da crise, criando a falsa impressão de que o principal consumidor de energia elétrica do país era residencial, ao passo que estava mais do que claro que a indústria era e ainda é o principal consumidor (Fearnside 2016; MME e EPE 2015).

Quando Lula foi eleito em 2002, o Brasil passava pelo auge da crise de energia elétrica. Embora os governos de esquerda tenham alcançado o mais alto nível institucional pela primeira vez na história do país, os alinhamentos políticos propostos na Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe – CEPAL foram de caráter neoliberal. Os objetivos eram fortalecer economicamente a região para iniciar ‘a ascensão dos países latino-americanos como potências industriais’, em consonância com as instituições econômicas internacionais, reforçando o discurso do crescimento econômico como desenvolvimento e mantendo fortes alianças com as elites locais – especialmente as de infraestrutura.

Os governos do Partido dos Trabalhadores – PT (Lula 2003 – 2006, 2007 – 2010; Dilma Roussef 2011 – 2014, 2015 – 2016), embora preocupados com programas sociais, investimentos públicos na educação e no Sistema Único de Saúde (SUS), cometeram erros graves ​​na continuidade da política neoliberal nos setores de infraestrutura e energia. Vastos subsídios e concessões foram dados ao setor privado (“Orçamento de subsídios da União – Ministério da Economia Fazenda”, Relatório 2º Orçamento de Subsídios da União 2003 – 2017), e muitos contratos de concessão foram celebrados para a exploração de recursos energéticos. Empreendimentos gigantescos de infraestrutura foram iniciados durante os governos do PT, o que levou à investigação de escândalos de corrupção envolvendo construtoras e investidores no negócio de infraestrutura.

Esse contexto histórico é muito útil para observar os movimentos de privatização no Brasil desde 2016. Em 2021 é presumível a possibilidade de haver apagões no país. Quanto mais ineficientes e problemáticas se apresentarem as empresas da holding Eletrobras, mais barata é a ação.

A ascensão da extrema direita e a inépcia do desgoverno miliciano abaixam a guarda estratégica nacional para a perda total do controle sobre setores estratégicos do país. É provável que o governo federal eleito pela máquina de notícias falsas ainda vá causar muito mais danos ao país. Sem governo e nas mãos do mercado, o Brasil pode agravar em muito a recessão em curso. Privatizar a Eletrobras no auge da pior crise sanitária da história do país é a evidência que o Brasil atinge seu breu mais profundo, sem perspectiva de saída. Apagou a luz. É a treva das trevas.

Energia elétrica é bem essencial, serviço essencial. A Eletrobras é uma das empresas mais ricas do mundo. Extinguir o controle público sobre a Eletrobras é inaceitável e uma perda irreparável para a população brasileira. (Outras Palavras)

VOZ DO PARÁ: essencial todo dia!

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