Qual o legado de Marie Curie. E por que sua história é atual

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
‘Radioactive’, cinebiografia da física e química polonesa, primeira mulher a vencer o Nobel, estreou neste mês na plataforma de streaming Netflix

Estreou na última quinta-feira (15) na Netflix o filme “Radioactive”, produção britânica de 2019 dirigida pela cineasta franco-iraniana Marjane Satrapi que narra a trajetória da cientista polonesa Marie Curie (1867-1934), uma das mulheres mais influentes do mundo.

Nascida em Varsóvia, Marya Salomee Sklodowska estudou na Universidade Volante, instituição clandestina que visava inserir as mulheres no ensino superior, o que era proibido à época. Na década de 1890, ela foi estudar em Paris, onde conheceu o físico francês Pierre Curie (1859-1906).

Inspirado no livro “Radioactive: Marie & Pierre Curie: A tale of love and fallout” (2010), da autora norte-americana Lauren Redniss, o filme destaca momentos-chave da vida da cientista: a história de amor do casal Curie, as descobertas científicas, as duas filhas (Eve e Irene), os dois Prêmios Nobel.

Embora o enredo seja bastante romantizado, conforme destacou a crítica Manohla Dargis no jornal americano The New York Times, a produção busca retratar Marie como imigrante, mulher, mãe e cientista pioneira.

Juntos, Marie e Pierre venceram o Prêmio Nobel de Física em 1903 – com estudo sobre o fenômeno da radioatividade, ao lado do físico francês Henri Becquerel (1852-1908).

Três anos depois da conquista, Pierre morreu atropelado por cavalos, em Paris. Marie deu continuidade às pesquisas e descobriu os elementos rádio e polônio, descoberta que lhe rendeu o Prêmio Nobel de Química em 1911.

Os estudos da cientista contribuíram para o desenvolvimento da quimioterapia para tratar câncer e da tecnologia em raio-x, que décadas depois possibilitaria a produção de bombas atômicas e a construção de usinas nucleares.

A exposição prolongada à radioatividade acabou provocando a morte de Marie, a primeira mulher a receber o Nobel – e a única a conquistar troféus em dois campos diferentes.

“A raridade que são mulheres laureadas com o Nobel levanta questões sobre a exclusão das mulheres da educação e de carreiras científicas”, escreveu a autora norte-americana Mary K. Feeney, em ensaio publicado no site acadêmico australiano The Conversation. Para Feeney, apesar dos avanços ainda há “barreiras explícitas e implícitas” para mulheres na ciência.

“Pesquisadoras do sexo feminino avançaram muito ao longo do século passado, mas há evidências esmagadoras de que as mulheres permanecem sub-representadas nas chamadas áreas STEM”, acrescentou.

STEM é a sigla para science, technology, engineering e mathematics (ciência, tecnologia, engenharia e matemática).

Qual o legado da cientista

Marie e os quatro irmãos foram educados pelo pai, Wladyslaw Sklodowski (1832-1902), professor de física, e pela mãe, Bronisława Skłodowska (1835-1878, diretora de um colégio particular para moças em Varsóvia. Entretanto, apenas o irmão Joseph teve acesso à universidade na Polônia; Marie e a irmã Bronia frequentaram a Volante, a faculdade fundada clandestinamente pela ativista polonesa Jadwiga Szczasinska-Dawidowa. Depois, Marie imigrou para a França em busca de oportunidades para poder continuar estudando.

Além de acesso e oportunidade, a cientista precisou reivindicar reconhecimento pelo trabalho. Em uma época em que à mulher se atribuía um papel coadjuvante ou um comportamento associado apenas à maternidade e às ideias de lar e família, ela foi diversas vezes retratada como “a companheira” de Pierre – e não como cientista em pé de igualdade com o marido.

Na indicação conjunta ao Nobel de 1903, tentaram excluí-la com a intenção de premiar apenas Pierre e Becquerel. Na candidatura à Academia de Ciências, Marie foi preterida pelos membros, que escolheram homenagear um homem, Édouard Branly, sob o argumento de “uma tradição imutável que parece bastante sensata para respeitar”.

Na indicação individual ao Nobel de 1911, já viúva, ela foi criticada na imprensa por ter um relacionamento com Paul Langevin, que na época era casado e era ex-pupilo de Pierre. Foi-lhe sugerido desistir de seu segundo prêmio para não passar por constrangimentos maiores. Marie não desistiu e foi receber a honraria em Estocolmo, na Suécia. No seu discurso, destacou diversas vezes o pronome pessoal “eu”.

“A história da descoberta e do isolamento dessa substância forneceu provas da hipótese que eu formulei segundo a qual a radioatividade é uma propriedade atômica da matéria e pode proporcionar um método para a descoberta de novos elementos. […] O isolamento do rádio como sal puro foi empreendido por mim, sozinha […] Eu medi […] Eu pensei”(Marie Curie: cientista, ao receber o Prêmio Nobel (1911))

“Marie se abalou muitas vezes com as resistências que lhe foram impostas, indignando-se com o fato de lhe impedirem de fazer o seu trabalho e contribuir para uma sociedade melhor, através do progresso da ciência, por motivos sexistas”, destacam as pesquisadoras Ingrid Nunes Derossi, da UFTM (Universidade Federal do Triângulo Mineiro), e Ivoni Freitas-Reis, da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora), em artigo publicado na revista acadêmica Educación Química, do México.

“Quando se pensa na presença da mulher no mundo da ciência, uma foto de 1927 marca um momento simbólico. Ela registra os 29 participantes da quinta edição da Conferência de Solvay, em Bruxelas, Bélgica”, escreveu em 2017 a pesquisadora Vanderlan Bolzani, à época vice-presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), em artigo na revista Ciência e Cultura, do Brasil.

 

Participantes da Conferência de Solvay se agrupam em foto

FOTO: CREATIVE COMMONS: CONFERÊNCIA DE SOLVAY OCORRIDA EM 1927, EM BRUXELAS, NA BÉLGICA

Na foto estavam expoentes da física e da química, como Albert Einstein (1879-1955) e Niels Bohr (1885-1962). Marie era a única mulher. “O exemplo de Marie Curie deve ter inspirado milhares de jovens a buscarem a carreira científica, entre elas a autora deste texto”, acrescentou Bolzani. “[Mas] embora o número de mulheres supere o de homens em muitas disciplinas científicas nos cursos de graduação, ao começarem suas carreiras como cientistas ou em outra profissão elas se deparam com várias barreiras, muitas até hoje intransponíveis”, ponderou.

Qual a atualidade da cientista

Na pandemia de covid-19, com a sobrecarga de home office, filhos e trabalho doméstico, a produção científica de mulheres foi impactada no mundo todo.

No Brasil, 52% das mulheres com filhos não conseguiram concluir seus artigos científicos, ante 38% de homens. São questões atuais de acesso, oportunidade e reconhecimento na área – questões que Marie Curie precisou enfrentar durante sua vida.

Nos últimos anos proliferaram projetos para divulgar o papel das mulheres na ciência.

Além de recentes documentários e filmes de ficção histórica protagonizadas por cientistas mulheres, premiações de reconhecimento à atuação científica, editais especiais, iniciativas acadêmicas e midiáticas (como o Open Box da Ciência, da organização Gênero e Número) são considerados instrumentos para avançar nas discussões sobre a inclusão e a importância da igualdade de gênero na ciência com marcos institucionais.

O Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência (11 de fevereiro), por exemplo, foi definido pela Assembleia das Nações Unidas no fim de 2015.

“A importância de um cenário científico mais plural está na própria concepção do que significa fazer ciência: a criação de conhecimento pressupõe a circulação e debate de ideias. Assim, um ambiente que prioriza valorizar o conhecimento produzido por um grupo homogêneo e seleto — composto por homens brancos — ameaça a simetria, colocando em xeque o progresso científico”, escreveu em ensaio publicado no Nexo Bruna Castanheira, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Publicado originalmente no Nexo

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