Quando a fome vira negócio

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Com doações que se tornam compras, grandes varejistas mostram otimismo com agravamento da pobreza

Leite, frutas, legumes e carne deram lugar a medo, ansiedade e insegurança na mesa da família Gomes, em Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio. Mãe de quatro crianças, Juciane Gomes passou a conviver com o fantasma da fome e excluiu da lista itens que antes eram essenciais na despensa. A alimentação tornou-se um gasto difícil de arcar, com os filhos de 15, 13, 9 e 6 anos sem ir para a escola. “Muitas vezes deixei que acordassem na hora do almoço e pulassem o café. Orava para que eles não falassem ‘mamãe, tô com fome’. Vi meu esposo deixando de comer pra dar pra eles”, recorda.

Com a redução e a interrupção do auxílio emergencial, as coisas que já não eram fáceis foram se agravando ainda mais. “Os grandes gostam de tomar leite, mas deixam pros pequenos. O leite deixou de ser essencial, fruta e legumes são luxos. Carne só mesmo em dia de festa. A gente tem se mantido como dá”, conta ela. Juciane tem 38 anos e, em março, foi contaminada pelo covid-19 e precisou se isolar em casa. As crianças ficaram sob os cuidados do padrasto, que acabou demitido por causa das faltas. Ambos estão desempregados.

A história da família Gomes é um retrato dramático de um país onde seis a cada dez pessoas enfrentam algum nível de incerteza sobre se haverá comida suficiente na mesa, segundo o mais recente levantamento sobre o tema. A pesquisa “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação de segurança alimentar no Brasil” estima que 15% dos brasileiros, incluindo crianças, enfrentarão insegurança alimentar grave, ou seja, fome diária e constante, ao longo de 2021.

Mas existe um Brasil em que as coisas vão muito bem e as perspectivas são bastante otimistas. Este é o país do setor supermercadista, que viu disparar vendas e margem de lucro em 2020. Em uma ponta, a população pobre e os que perderam renda correm para os atacarejos, que concentram mercado e operam com custos baixos, conseguindo, assim, oferecer o menor preço. Na outra ponta, as vendas por meios digitais também dispararam atendendo aos setores da classe média e alta, que passaram a se alimentar em casa com mais frequência e foram menos afetados pela pandemia.

Surf no caos

 Enquanto o Brasil afunda em uma crise humanitária sem precedentes, os dois grupos que concentram a maior fatia do varejo de alimentos no país, Pão de Açúcar e Carrefour, não escondem a euforia com resultados recordes. “O nosso modelo de negócio surfa bem em deflação, em inflação, em concorrência, sem concorrente, e nós estamos demonstrando isso. Esse ano de 2020 nós aproveitamos, sim, uma volatilidade bastante forte dentro das commodities, principalmente. (…) Nós conseguimos surfar nessa oportunidade, o que gerou um resultado acima das nossas expectativas”, resumiu Roberto Müssnich, diretor do Atacadão, ao comentar os resultados de 2020.

O Atacadão pertence ao grupo Carrefour e fechou o ano passado com R$ 47 bilhões em vendas, 23% a mais do que no ano anterior, enquanto seu concorrente direto Assaí, que pertence ao Pão de Açúcar, somou R$ 39,4 bilhões, resultado 30% maior que em 2019. A migração de consumidores para os atacarejos em busca de preços mais baixos foi tão forte que compensou a queda nas vendas para restaurantes, mercadinhos e lanchonetes. Todos os números são os oficialmente divulgados pelas empresas.

“O que nós temos observado até o momento é que, no fim, o cash acelerou um pouco mais essa migração de clientes, de consumidores de outros formatos para o canal, (…) o que era esperado, o momento de crise, de incerteza, causa uma busca natural por canais de preço baixo. Ao longo de 2021, vamos ter impactos pelo fim do auxílio, mas é o canal que será menos impactado”, previu Belmiro Gomes, diretor do Assaí, em apresentação dos resultados da empresa.

O Carrefour Varejo contabilizou R$ 20,5 bilhões em vendas, resultado 12,5% maior que em 2020. Somando todas as operações do grupo – Atacadão, Carrefour Varejo e Banco Carrefour – o lucro líquido atingiu R$ 2,75 bilhões, um valor 43% maior do que o obtido em 2019. O Pão de Açúcar fechou 2020 com receita de R$ 31 bilhões em suas atividades no Brasil, cifra 8% maior do que a obtido no ano anterior. O faturamento do e-commerce do grupo cresceu três vezes mais que em 2019 e atingiu R$ 1,1 bilhão.

Fome, desemprego e crise são termos que não aparecem no vocabulário desses executivos. Nem mesmo a incerteza quanto à manutenção do auxílio emergencial este ano parece abalar o desempenho dos grandes varejistas. “Com auxílio emergencial menor, sem dúvida nenhuma você tem também valores menores destinados à alimentação, mas o crescimento continua”, previu Márcio Milan, vice-presidente da Associação Brasileira de Supermercados (Abras), em entrevista coletiva em abril. A entidade prevê uma alta de 4,5% no faturamento dos supermercados este ano, frente ao aumento de 9,6% registrado em 2020.

O negócio dos grandes varejistas de alimentos é estruturado de forma a maximizar ganhos e reduzir perdas, e essas redes ganham mesmo quando resolvem fazer doações. Uma campanha lançada pelas associações paulista e brasileira de supermercados (Apas e Abras) é um bom exemplo. A iniciativa estimula empresas e pessoas físicas a fazerem doações que serão revertidas em cartões individuais no valor de R$ 100 para serem usados nos próprios supermercados.

“Com R$ 100 você tem uma família alimentada por 30 dias, uma família de até cinco pessoas”, afirmou o governador de São Paulo, João Doria, o mesmo que, em 2017, quando o fantasma da fome já assombrava, propôs alimentar famílias pobres com uma ração humana feita de restos de alimentos.

Os primeiros 300 cartões foram doados pela própria Apas, um valor abaixo do mínimo estabelecido para as empresas, que devem fazer doações a partir de R$ 5 mil. A campanha exalta a liberdade de o consumidor escolher o que comprar e usar o benefício “quantas vezes quiser”. A Apas também anunciou, em parceria com a prefeitura de São Paulo, a instalação de 102 pontos de coleta para arrecadar alimentos não perecíveis comprados pelos clientes dos próprios supermercados. Fazer caridade com o chapéu alheio parece ser um bom negócio para o setor, garantindo faturamento e pontos positivos na imagem de seus associados.

Doar para receber

 A substituição de compras públicas de alimentos diretamente dos produtores por doações de grandes redes também revela uma face perversa dos negócios dos supermercadistas. Apenas no ano passado, o setor registrou 1,79% de perdas sobre o faturamento bruto em 2020. Parece pouco, mas não é. Esse índice representa um valor estimado em R$ 7,6 bilhões.

Em perdas, estão incluídos itens quebrados, furtados e vencidos. Os produtos vencidos e violados geram custo operacional para descarte correto. A Abras divulga que, entre “os principais fatores que impulsionaram as perdas dos perecíveis no setor supermercadista, estão: validade vencida (37,4%) e produto impróprio para venda (29,1%). Em relação aos produtos não perecíveis, a validade vencida também liderou as respostas dos participantes, 42,5%, seguida de produtos avariados, 29,1%.”

Doar alimentos, assim, pode ser um bom negócio também para reduzir custos, sem precisar gastar com operações de descarte.

Em São Paulo e em outros estados, a legislação tributária permite que doações de itens alimentícios classificados como “perda” possam ser feitas sem cobrança de ICMS. Entre eles estão alimentos vencidos, com embalagem danificada e impróprios para comercialização, como o “feijão de bandinha” nas primeiras cestas distribuídas às mães de crianças da rede municipal do Rio de Janeiro, ainda na gestão do prefeito Marcelo Crivella. “Era um saco todo assim. A alimentação vinha velha, com bicho. As mães me falavam: ‘Olha a cesta, veio desse jeito’. E eles diziam que era mentira nossa”, relembra Juciane Gomes.

A falta de assistência do poder público fez com que 2 mil mulheres se unissem no grupo Passeata das Mães para reivindicar assistência com a alimentação no período de aulas em casa. Não foi uma luta fácil até que se estabelecesse o valor mensal de R$ 54 por criança, em agosto do ano passado, também em cartões a serem gastos nos supermercados.

“Foi muita luta. E as mães tiveram que comprar nos mercados que aceitavam, muitas tendo que pagar passagem de ônibus. E comprar menos do que compravam, imagina, com o preço exorbitante do pacote de arroz chegando a R$ 19, R$ 25”, lembra Jociane, que passou a ter crises de ansiedade e depressão. “É fácil pro governo dar assistência, mas o que a gente quer é oportunidade. Oportunidade de ter um emprego, de fazer um curso, uma faculdade. Sujeitar essas mulheres a pegar um benefício do governo é mais fácil e custa bem menos do que ajudá-las a andar com as próprias pernas”, conclui.

Reportagem de Mariana Costa para O Joio e O Trigo

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