Uma nova versão do equilíbrio de poder
Em maio de 2021 o Conselho Nacional de Inteligência (NIC – National Inteligence Council) dos EUA publicou o relatório Tendências Globais 2040 e que foi sintetizado na frase “Um mundo mais contestado”. Dada a dinâmica e complexidade do mundo em que vivemos, prever tendências para os próximos vinte anos não é tarefa fácil, mas como colocado pelo próprio NIC, “a inteligência não reivindica infalibilidade para suas profecias. A inteligência apenas sustenta que a resposta que ela dá é a mais profunda e objetivamente estimada e cuidadosamente considerada. (Sherman Kent)”
O relatório é fundamentado a partir de três pilares. Primeiro foram avaliadas as forças estruturais em quatro áreas principais: demografia, meio ambiente, economia e Tecnologia. Em seguida foi avaliado como estas forças interagem e se cruzam com outros fatores para afetar dinâmicas emergentes em três níveis de análise: indivíduos e sociedade, estados e o sistema internacional. A partir desta base, várias incertezas-chave são identificadas e utilizadas para estimar possíveis cenários futuros.
De forma bem sintética cinco grandes temas são transversais ao longo de toda a análise: “Primeiro, desafios globais compartilhados – incluindo mudanças climáticas, doenças, crises e tecnologias desruptivas – provavelmente irão se manifestar com mais frequência e intensidade em quase todas as regiões e países. Em segundo lugar, a dificuldade desses desafios transnacionais é agravada em parte, aumentando a fragmentação dentro de comunidades, estados e no mundo como um todo. O terceiro ponto é o desequilíbrio. A escala dos desafios transnacionais e as implicações emergentes da fragmentação estão excedendo a capacidade de sistemas e estruturas. O quarto tema se refere ao fato de que uma consequência chave de um maior desequilíbrio é uma maior contestação dentro das comunidades, dos estados e da comunidade internacional. Isso engloba tensões crescentes, divisão e competição nas sociedades, nos estados e internacionalmente. Finalmente, a adaptação será tanto um imperativo como uma fonte chave de vantagem para todos os atores deste mundo” (NIC, 2021).
De uma maneira bem ampla algumas megas tendências podem ser identificadas, claramente percebidas, verificadas e mesmo intuídas em uma observação um pouco mais atenta de tudo que já está acontecendo ao nosso redor. Um dos méritos do relatório do NIC é a capacidade de síntese destas tendências e das conexões entre elas.
Parece ficar cada vez mais claro que as alterações climáticas, por exemplo, irão exacerbar cada vez mais os riscos para a segurança humana e nacional e forçar os Estados a fazer escolhas difíceis, mas inevitáveis. A questão da segurança alimentar é um bom exemplo. Também é claro que o ônus destas mudanças não será distribuído de forma igualitária por todos os países. As populações mais necessitadas também devem enfrentar / carregar um ônus maior e inaceitável ao longo do processo. Além disso, é muito provável, até porque esta realidade já está em grande medida presente, que o processo irá “exacerbar o processo competitivo, contribuindo para uma maior instabilidade, forçando a prontidão militar e encorajando movimentos políticos”. Os países, incluindo os mais desenvolvidos, já enfrentam um descasamento entre as demandas das populações e aquilo que os governos têm de fato condições de realizar. Não é difícil neste contexto identificar um aumento da volatilidade política (internamente e externamente aos países) e mesmo riscos para os estados democráticos de direito. A governança pública (ou a ausência dela) é um elemento central deste processo e de suas consequências.
Outro ponto que todos observamos e que também temos abordado aqui na Dom Total é o ritmo e abrangência do desenvolvimento tecnológico. Segundo o NIC a “competição global pelos elementos centrais da supremacia tecnológica aumentará. As tecnologias e aplicativos derivados permitirão uma adoção rápida. O poder no sistema internacional evoluirá para incluir um conjunto mais amplo de fontes, mas é provável que nenhum estado esteja posicionado para dominar todas as regiões ou domínios”. Possivelmente a “coopetição” (competição com cooperação) delinearia uma evolução mais rica para toda a comunidade global com perspectiva de situações de ganha-ganha como descrito na teoria dos jogos. O recrudescimento de tensões entre os polos representados de um lado pelos estados democráticos de direito e de outro por modelos políticos alternativos poderá, no entanto, levar à situações opostas com perdas e riscos para todos.
Outras tendências que também já se materializam se referem ao desenvolvimento econômico como um todo, “incluindo o aumento das dívidas nacionais, um ambiente comercial mais complexo e fragmentado, a disseminação global do comércio de serviços, processos disruptivos relacionados ao emprego e o aumento contínuo de empresas poderosas, estão moldando as condições dentro e entre os estados”. Sobretudo ao longo do período da pandemia e do período que agora o sucede estas questões ficaram ainda mais claras. Embora ao longo dos últimos anos os países economicamente mais relevantes tenham priorizado o crescimento econômico e em grande medida restaurado e até fortalecido / melhorado relações comerciais robustas, a realidade é que interdependência econômica existe ao lado da competição por influência política, modelos de governança, domínio tecnológico e vantagem estratégica.
De certa forma estamos em uma nova versão do chamado equilíbrio de poder como descrito de forma magistral por Henry Kissinger em seu conhecido livro intitulado “Diplomacia”. Neste contexto geral parece que a tendência predominante é a consolidação de vários blocos econômicos e de segurança de tamanho e força variados, centrados nos Estados Unidos, China, UE, Rússia e algumas potências regionais como, por exemplo, o Brasil. Como sumariza o relatório do NIC “estes blocos são focados em autossuficiência, resiliência e defesa. As informações fluem em enclaves cibernéticos independentes, as cadeias de suprimentos são reorientadas e o comércio internacional é prejudicado (em algumas situações até mesmo interrompido – grifo nosso)”. Os países em desenvolvimento como um todo e os mais vulneráveis em particular são apanhados no meio do caminho. Ainda dentro das perspectivas econômicas alguns novos aspectos também ganham cada vez mais relevância como, por exemplo, aqueles relacionados às grandes plataformas digitais e aos essenciais aspectos regulatórios.
Também o sistema internacional não só não tem no momento uma direção clara como, segundo a próprio relatório do NIC, é caótico e volátil. É ainda muito claro para todos e isso não é de forma alguma um fato novo, muito antes pelo contrário, que as regras e instituições internacionais são amplamente ignoradas. Os países da OCDE e países em desenvolvimento como, por exemplo, na América Latina são atormentados por um crescimento econômico mais lento, divisões sociais cada vez maiores e paralisia política. Dentro desta realidade “a China está aproveitando os problemas do Ocidente para expandir sua influência internacional” (NIC, 2021).
No final das contas todos estes aspectos e tendência acabam inevitavelmente nos conduzindo a um tema / discussão central que se refere à Governança Global. Talvez, por mais paradoxal que isso possa parecer, “um caminho mais pragmático e tangível para o desenvolvimento de uma melhor governança global já esteja sendo percorrido pelos próprios mercados e em particular pela evolução dos princípios, das práticas e normativas que direcionam as decisões de alocação de recursos financeiros”. Claro que aprimoramentos institucionais e regulatórios são um processo permanente. Mas a democracia, a liberdade, a concorrência e o capitalismo revolucionaram de modo incomparável o desenvolvimento humano nos últimos séculos por suas essências geradoras de permanente inovação e apesar de suas imperfeições. As alternativas a este caminho não têm absolutamente nada de novo e continuam se mostrando desastrosas. (por Jose Antônio de Sousa Neto)
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