Terra devastada

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Sistema federal de cultura está sendo destruído

Abaixo o artigo que havia escrito e que pensei em suspender em função da nota publicada pelo governo à noite, dando conta de que houve um erro na publicação da MP que extinguia o Ministério do Turismo e transferia as atribuições da Pasta, incluindo a estrutura da Secretaria Especial de Cultura, para o recém-instituído Ministério do Trabalho e da Previdência Social.

Em 2020, funcionários protestaram contra o descaso e as demissões

Tudo muito estranho, pois a publicação do Diário Oficial da União mencionava claramente e funcionalmente essas mudanças, portanto, tudo muito esquisito e atípico, mesmo para um ‘desgoverno’ como o atual.

Ao respirar um pouco mais aliviada com o desmentido, ligo a tevê e começo a ver a profusão de matérias sobre o incêndio no galpão da Cinemateca Brasileira em São Paulo.

As lágrimas secaram, não consegui verter uma mínima gota, tal o estado de revolta, de indignação, frente às chamas que carbonizavam parte expressiva da memória do cinema nacional.

Assistindo emudecida e perplexa a ferocidade das labaredas e do descaso (crônica da morte anunciada), resolvi manter a publicação do que havia redigido inicialmente, pois, na verdade, a destruição é a pedra de toque dessa ‘desadministração’, como se segue.

Para essa gente, interessa ainda mais o martírio da Cultura, não basta a extinção de seu Ministério, a humilhação e o desmerecimento de sua conformação como uma secretaria qualquer, tendo à frente titulares-títeres.

Não! Guardaram um último petardo contra a área considerada bastarda. Planejaram descaracterizá-la por completo, cortando-lhe qualquer sentido de conexão ao submetê-la à Previdência Social.

Demissões de quem restou com alguma consistência técnica, uma Secretaria fantasma, intimidada, esvaziada, com o principal setor sob às ordens de um capitão da Polícia Militar da Bahia, empoderado em dó (dor) maior no reino dos incentivos fiscais. Terra arrasada.

Lei Rouanet atingida por mudanças radicais (ainda a serem devidamente refletidas e ponderadas) no início desta semana tenebrosa, semana da morte de intelectuais extraordinários, de vozes de sabedoria e humanismo. Soa um profundo silêncio no panteão nacional, o legítimo, não o falacioso.

Um horror assistir a essa destruição sem igual, sem condições ainda de entender, para além do óbvio, as consequências estruturais da dimensão da debacle, da terra incendiada e salgada, do banimento do sistema federal de cultura.

Apenas o sentimento de luto e a certeza de muita luta pela frente me acompanham, além dos versos de Eliot, do Sermão do Fogo, em The Waste Land:


dossel do rio se rompeu: os derradeiros dedos das folhas
Agarram-se às úmidas entranhas dos barrancos. Impressentido,
O vento cruza a terra estiolada. As ninfas já partiram.
Doce Tâmisa, corre suave, até que meu canto eu termine.
O rio não suporta garrafas vazias, restos de comida,
Lenços de seda, caixas de papelão, pontas de cigarro
E outros testemunhos das noites de verão. As ninfas já partiram.
E seus amigos, os ociosos herdeiros de magnatas municipais,
Partiram sem deixar vestígios.
Às margens do Léman sentei-me e lá chorei…
Doce Tâmisa, corre suave, até que meu canto eu termine,
Doce Tâmisa, corre suave, pois falarei baixinho e quase nada te direi.
Atrás de mim, porém, numa rajada fria, escuto
O chocalhar dos ossos, e um riso ressequido tangencia o rio.
Um rato rasteja macio entre as ervas daninhas,
Arrastando seu viscoso ventre sobre a margem
Enquanto eu pesco no canal sombrio
Durante um crepúsculo de inverno, rodeando por detrás o gasômetro,
A meditar sobre o naufrágio do rei meu irmão
E sobre a morte do rei meu pai que antes dele pereceu.
Brancos corpos nus sobre úmidos solos pegajosos
E ossos dispersos numa seca e estreita água-furtada,
Que apenas vez por outra os pés dos ratos embaralham…

Fragmento de The Waste Land (1922), de T.S.Eliot, tradução de Ivan Junqueira.

(por Eleonora Santa Rosa)

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