Tudo o que mudou no cenário político da França

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Arrancada de Mélenchon no primeiro turno culmina com eleição da segunda maior bancada no parlamento. Extrema direita também cresceu. Maior derrotado é o neoliberalismo de Macron, que enfrentará oposição forte dos dois lados

Por Leandro Gavião no Le Monde Diplomatique Brasil

A cultura política brasileira se desenvolveu com uma ênfase excessiva no poder Executivo. Talvez, isso explique a razão pela qual as eleições legislativas francesas, finalizadas no dia 19 de junho, tenham recebido atenção rarefeita dos grandes órgãos de imprensa nacionais e repercutido de forma tão tímida nas redes sociais. Salvo raras exceções, não houve expressivos debates ou análises aprofundadas sobre esse evento que é crucial para projetar os possíveis rumos dos próximos cinco anos de um país que é a sétima economia do mundo e, ao lado da Alemanha, um dos pilares da União Europeia..

Ainda que a teoria da divisão dos poderes de Montesquieu seja amplamente difundida, reconhecida e aplicada – tornando-se lugar-comum nas cartas magnas de praticamente todos os países –, é sempre válido lembrar que, nos sistemas presidencialista e semipresidencialista, o Legislativo – uma vez que esteja devidamente dotado da independência que lhe cabe – é um agente fundamental para determinar se o mandato presidencial será facilitado por meio de negociações e de alianças ou se será marcado por resistências e entraves.

Diferentemente do que ocorre no Brasil, as eleições na França são divididas em dois blocos. No primeiro, a disputa é pelo cargo mais importante do país: a Presidência da República. Cerca de dois meses depois, ocorrem os pleitos para o Parlamento. Dessa forma, o eleitorado pode escolher seus parlamentares sabendo de antemão quem será o líder do Executivo. Embora não seja uma regra, normalmente o presidente eleito consegue traduzir sua força momentânea em muitos votos para o Legislativo, minimizando os atritos gerados por uma hipotética dissonância ideológica entre os poderes. No caso de Macron, a expectativa era que a coligação Juntos (centro/centro-direita) conseguisse a maioria absoluta das cadeiras.

No Executivo, a extrema-direita se aproxima do poder

Após o segundo turno das eleições presidenciais, em 24 de abril, o que chamou a atenção do público e da imprensa internacional não foi a confirmação de mais um quinquênio de Emmanuel Macron. A reeleição é, via de regra, uma corrida na qual o candidato da situação começa uns bons metros à frente. Ademais, todas as pesquisas de opinião indicavam uma vitória (apertada) de Macron.

Enquanto as grandes lideranças democráticas globais e a União Europeia saudavam, com um suspiro de alívio, o êxito na votação, a candidata derrotada, Marine Le Pen, realizava o seu primeiro discurso após a derrota. Em tom triunfal, Le Pen não menosprezou o seu desempenho, classificando-o como “vitória retumbante”, apresentando-o como elemento sintomático da aspiração popular por uma “grande mudança” e de latente “desconfiança” para com o establishment.

De fato, a comemoração de Le Pen faz sentido. Afinal, nunca antes na história da Quinta República um partido de extrema-direita conseguiu um resultado tão expressivo nas urnas: 41,46% dos eleitores franceses depositaram sua confiança na candidata do Reagrupamento Nacional (RN), legenda de extrema-direita com um programa ultranacionalista, antieuropeu e protecionista. Pela lógica, as eleições legislativas deveriam ser o corolário da performance de Le Pen, projetando, assim, o RN como a segunda força do Parlamento.

Contudo, a política detesta as vias cartesianas e, por vezes, a sua trajetória prefere os meandros do imprevisível.

No Legislativo, a reviravolta da (improvável) aliança de esquerda

Uma vez encerrado o processo eleitoral para a presidência, as esquerdas francesas, diante de mais um desempenho insatisfatório no primeiro turno, iniciaram uma série de reuniões para construir consensos em torno de uma frente ampla.

Após duas votações medíocres para a presidência (5% em 2017 e 4% em 2022), o tradicional Partido Socialista (PS) se reuniu com a França Insubmissa (FI), legenda de inclinação populista liderada por Jean-Luc Mélenchon. Vale destacar que Mélenchon foi o terceiro lugar no primeiro turno (21,95%) e, consequentemente, ocupa o posto de principal quadro da esquerda francesa contemporânea. Outros partidos menores juntaram-se ao bloco e, dessa construção de consensos, surgiu a Nova União Popular Ecológica e Social, mais conhecida pelo acrônimo Nupes, que reúne mais de dez legendas de inclinação social-democrata, socialista, ecologista e comunista. Contrariando as expectativas dos mais céticos, a esquerda conseguiu se unir e fazer a segunda maior bancada do Parlamento.

Dividido em oito capítulos e com uma introdução assinada por Mélenchon, o programa da Nupes é extremamente ambicioso, reunindo demandas históricas da esquerda. No eixo do trabalho, busca reduzir a jornada, recuperar a estabilidade, desautorizar o trabalho aos domingos e reduzir as desigualdades salariais. Na dimensão da ecologia, tem como meta o “lixo zero” e a concessão de status jurídico à natureza, com a “possibilidade de defendê-la na justiça”, além de defender a preservação dos ecossistemas e a proteção dos animais. No campo econômico, visa à reestatização, à auditoria da dívida pública, à realização de uma “revolução fiscal”, à erradicação da pobreza e ao direito à moradia. O texto também prevê uma das pautas de Mélenchon nas eleições de 2017: a instauração da Sexta República, com elementos de democracia participativa, uma nova Constituição e o fim da “monarquia presidencial”.

Após a apuração dos votos, a distribuição dos 577 assentos dentro do Parlamento francês ficou da seguinte forma: a Juntos, coligação situacionista, com 245 cadeiras; a Nupes, oposição de esquerda, com 131; a RN, de extrema-direita, com 89; o Republicanos, da direita tradicional, com 61; e o restante dos partidos, com 51.

Nova composição da Assembleia Nacional

Fonte: Ministère de l’Intérieur (2022)

Os desafios de Emmanuel Macron

Embora tenha feito a maior bancada, o bloco situacionista perdeu a maioria absoluta, além de ter colecionado algumas derrotas simbólicas importantes, como a não reeleição de Richard Ferrand (Juntos), atual presidente da Assembleia Nacional.

Nos próximos cinco anos, Emmanuel Macron precisará conviver com um Parlamento muito diferente e inclinado a uma oposição mais intransigente. A margem de manobra da bancada governista reduziu-se sobremaneira, encontrando-se no meio de duas forças políticas opostas e em franco crescimento. Pela esquerda, uma aliança potente conduzida por um populista e com um ousado programa de reformas que vai na direção oposta da plataforma liberal da Juntos. Pelo outro lado, assiste-se ao crescimento vertiginoso da extrema-direita, encabeçada por Marine Le Pen.

Um governo entre dois grandes blocos e dois líderes em ascensão, com programas opostos. A sombra da polarização começa a cobrir o Legislativo, deixando à mostra apenas as dificuldades que se desenham no próximo quinquênio. A manutenção do diálogo, que é a essência do Parlamento, deverá ser o grande desafio do próximo mandato de Macron.

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