Ucrânia: guerra “local” e crise mundial

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Trata-se de uma guerra para reconfigurar a política internacional de um mundo capitalista em crise e em decadência

A guerra na Ucrânia é a expressão da passagem da crise mundial do terreno econômico e político para o bélico, e terá repercussões, inclusive militares, no mundo inteiro, das quais nenhum país poderá fugir, e nenhuma força política lavar as mãos, declarando-se neutra ou defendendo uma posição “equidistante”.

Embora Rússia apareça como “agressora”, o clima político da guerra foi cuidadosamente preparado pela grande mídia ocidental, pressionando seus governos, ao ponto de um pesquisador australiano concluir, na véspera do 24 de fevereiro, que “o roteiro para a invasão já parece ter sido escrito, e não necessariamente pela caneta do líder russo. As peças estão todas no lugar: a suposição da invasão, a prometida implementação de sanções e limites na obtenção de financiamento, além de uma forte condenação”. Pouco ou nada foi dito na grande mídia ocidental sobre como a aliança da OTAN se expandiu, desde a dissolução e colapso da União Soviética em 1991, cada vez mais ameaçadoramente para a Federação Russa, o principal Estado sucessor da antiga federação de nações que compunham a URSS.

Os mesmos EUA que impulsionam a extensão da OTAN até às próprias fronteiras da Rússia, visando, através de pressão e chantagem militar, a penetração de seus capitais por todo o antigo território soviético, anunciaram pouco antes disso uma forte retomada do seu crescimento econômico simultaneamente ao maior orçamento militar de sua história, dois fatos estreitamente vinculados. Em início de 2014 foi defenestrado na Ucrânia Viktor Yanukovych, governante próximo da Rússia, no episódio conhecido como “Euromaidan”.

A retaliação russa foi a retomada da Crimeia, território cedido pela URSS à Ucrânia em 1954. Depois da anexação da península, forças separatistas no Leste da Ucrânia, em regiões de maioria russa, fortaleceram seu pleito independentista. Ante a possibilidade de redução do território ou mesmo de autonomia dessas regiões, o novo governo ucraniano, encabeçado por Volodymir Zelensky, recuperou o projeto de seu país para compor a OTAN.

Muito antes disso, treze países, a República Checa, Polónia, Hungria (1999), Estónia, Letónia, Lituânia, Eslováquia, Roménia, Bulgária, Eslovénia (2004), Albânia, Croácia (2009) e Montenegro (2017) aderiram à OTAN desde aquele evento. O cerco pelo Ocidente está quase concluído, agora é hora do cerco pelo Sul, com a Ucrânia, a Geórgia, a Moldávia, e possivelmente o Azerbaijão já tendo apresentado sua candidatura. A operação está marcando passo no Leste, com os países da Ásia Central apoiando, pelo menos por enquanto, sua poderosa vizinha Rússia, também atendendo aos interesses de seu outro gigante vizinho, a China.

Washington acusa Moscou faz meses, mas não parou de deslocar porta-aviões e tropas para a fronteira russa. A adesão da Ucrânia à OTAN traz imediatamente para a agenda geopolítica a implantação de ogivas nucleares em seu território: um míssil nuclear poderia cair sobre Moscou em um período de poucos minutos. Em outras palavras, uma situação em que uma arma nuclear carregada estaria sendo apontada contra o coração da Rússia. Esta máquina de guerra é o que ameaça o futuro da humanidade na Europa e na Ásia, em primeiro lugar. Diante do ataque russo, The Economist, histórico porta-voz britânico do grande capital, sugere que a OTAN aproveite a circunstância para ocupar toda a Europa do Leste, independentemente dos limites fixados pelos acordos precedentes.

A responsabilidade pela invasão militar da Ucrânia é, portanto, inteiramente da OTAN, que se espalhou do Atlântico Norte para a Ásia Central e militarizou todos os estados ao redor da Rússia. Os dois meses de discussões desde o início da mobilização de tropas dentro da Rússia, depois para a Bielorrússia e os mares Báltico, Norte e Negro, terminaram, antes da invasão, em um impasse completo. Os EUA e a União Europeia se recusaram a assinar um compromisso de não incorporar a Ucrânia à OTAN, desmilitarizar os estados que fazem fronteira com a Rússia e reativar o tratado que contemplava a reunificação da Ucrânia, na forma de uma república federal. Eclodiu uma guerra, como consequência, em primeiro lugar, de uma política de extensão da OTAN a todo o mundo.

O mesmo procedimento acontece no Extremo Oriente, onde EUA, Austrália, Nova Zelândia e Japão estabeleceram um acordo político-militar às portas da China. A OTAN ocupou o Afeganistão, corredor entre o Oriente Médio e o Extremo Oriente, há catorze anos. Também participou no bombardeio e desmembramento da Líbia e armou as formações ditas islâmicas para derrubar o governo da Síria. Agora, os governos da OTAN implementaram sanções econômicas, incluindo a suspensão, pelo governo alemão, da certificação do gasoduto NordStream2, que deveria completar o fornecimento de gás russo à própria Alemanha.

O bumerangue ucraniano é a expressão mais profunda da crise da política imperialista (não só dos EUA) mundial, que foi antecipada pela retirada sem glória do Afeganistão, o desastre na Líbia (“uma merda”, nas palavras textuais de Barack Obama) e, sobretudo, no Iraque. Reduzi-lo a um episódio de uma reformulação geopolítica internacional, em favor de um potencial bloco China-Rússia, contra os dominantes ocidentais tradicionais, seria um enfoque unilateral, ignorante do contexto de crise capitalista mundial, do conjunto dos fatores políticos internacionais postos em jogo, e até das dimensões históricas implicadas no conflito.

Por trás da movimentação agressiva impulsionada pelos EUA, filtram-se as condições precárias da retomada econômica norte-americana, que mal ocultam as condições de crise do maior capitalismo do planeta. No terceiro trimestre de 2021, a dívida pública americana ultrapassou 28 trilhões de dólares, ou 125 % do PIB do país: o governo americano aumentou a dívida pública de forma enorme e, em condições de crise sanitária, não cobrou impostos de crise sobre as grandes empresas. A promessa democrata de salário-mínimo de 15 dólares/hora foi abandonada, esse valor permanece em 7,25 dólares. O orçamento militar ianque foi aumentado para US$ 720 bilhões, o maior desde a Segunda Guerra Mundial (apesar do desengajamento dos EUA no Afeganistão). Na área de obras públicas, a administração Biden, com apoio republicano, aprovou um orçamento que favorece as grandes empresas de construção.

Deve-se lembrar que foi nos EUA que a pandemia do coronavírus resultou no maior número absoluto de mortes do mundo: mais de 820.000 até final de 2021. Apesar da extrema gravidade da situação, Biden não executou nenhuma ação que entrasse em conflito com os interesses da Big Pharma. Paralelamente, a concentração de capital aumentou como nunca antes na história: a Apple se tornou a primeira empresa da história a alcançar o valor de US$ 3 trilhões; em dezesseis meses, o valor da Apple subiu 50%. Em 2021 as cinco maiores big techs (Apple, Google, Amazon, Microsoft e Facebook-Meta) bateram, juntas, o valor acionário de US$ 9,3 trilhões (já superaram os dez trilhões). Durante a pandemia, essas companhias foram as mais preparadas para lucrar com o “trabalho remoto”.

Na sua retomada de atitudes supostamente semelhantes às da “guerra fria”, os EUA aproveitam as contradições das políticas dos governos dos países antigamente subtraídos ao domínio imperialista pelas revoluções socialistas. China e Rússia avançaram no caminho da restauração capitalista após os acontecimentos de 1989-1991. Presos às contradições do processo de restauração, estes países estão enfrentando agora uma escalada da pressão militar, econômica e política imperialista para impor-lhes, por todos os meios, subjugação total, fragmentação e lhes impor um novo tipo de colonização imperialista, mascarado como uma “mudança de regime democrático”. Esses regimes não são capazes nem sequer estão dispostos a derrotar a ofensiva imperialista, buscam um compromisso improvável e uma acomodação impossível com o inimigo agressor de seus povos, em nome da “cooperação internacional”, a “multipolaridade”, um “acordo ganha-ganha”, todos os avatares das velhas fórmulas fracassadas de “coexistência pacífica” e do “socialismo em um único país”.

No Cazaquistão, ex-república soviética, os clãs recrutados na antiga burocracia deflagraram uma repressão no recente “janeiro sangrento”, com mais de 160 mortos, milhares de feridos e 10.000 detenções. O Cazaquistão é o país mais rico da Ásia Central. Líder mundial na produção de urânio, também possui grandes depósitos de petróleo, gás natural, carvão, minérios, grandes quantidades de metais preciosos como manganês, cromo, potássio, titânio ou zinco. Durante o tempo da URSS, a renda dessa riqueza, extraída em grande parte pelos deportados do gulag, foi capturada pelos principais executivos da burocracia.

Depois de 1990, o clã Nazarbayev continuou a engordar vendendo a exploração desses recursos a multinacionais, numerosas no país. Enquanto a maioria da população sobrevive com salários miseráveis nas cidades, e o campo é deixado ao subdesenvolvimento, uma oligarquia rica – algumas das fortunas do país estão nas paradas mundiais – espalha seu estilo de vida luxuoso. Uma ditadura feroz preserva esses privilégios, monitora de perto a população, proíbe sindicatos e organizações independentes, sufoca toda a liberdade democrática e intervém com extrema violência sempre que ocorre um protesto.

Não estamos diante de uma nova “guerra fria”, opondo capitalismo e “socialismo real” (ou mesmo imaginário). E comparar a “expansão étnica” da Rússia impulsionada por Putin com a expansão, também “étnica”, hitleriana em direção dos Sudetos tchecos e da Áustria em 1938, como fez a grande mídia, significa simplesmente esquecer que esta última foi explicitamente anuída pelas potências ocidentais na Conferência de Munique, do mesmo ano. A semelhança é, portanto, apenas formal.

A resistência russa à OTAN lança uma luz sobre a potencial desintegração da Rússia, encoberta pela sua “expansão”. A dissolução da URSS, promovida pela burocracia encabeçada por Boris Ieltsin, sucedido por Putin, representou um passo em direção da desintegração nacional. A integração russa ao mercado mundial resultou em um retrocesso de suas forças produtivas e de sua economia. Putin, agora, enfrenta a guerra como defensor dos interesses da oligarquia capitalista russa, depurada de alguns elementos mafiosos e beneficiária desse processo, contra o capital mundial.

O regime político na Rússia é uma expressão da tendência dissolvente existente na Rússia “capitalista”: estabeleceu uma sorte de bonapartismo buscando submeter as insuperáveis contradições sociais e nacionais da Federação Russa no espartilho da repressão política e da militarização. As Forças Armadas da Rússia podem ocupar a Ucrânia, mas o sistema russo, economicamente muito enfraquecido, não é capaz de resistir à pressão do imperialismo capitalista mundial.

A inevitável fratura do bonapartismo de Putin reconsidera a alternativa da dissolução nacional. A Rússia é uma aglomeração de nações que assumiu, historicamente, a forma de um Estado, czarista, sob a pressão de outras potências, inclusive vizinhas. A revolução bolchevique tentou superar essas contradições mediante a criação da URSS, como livre associação de nações, e impulsionando a revolução internacional (vale lembrar que, nos debates da época, Rosa Luxemburgo se opôs veementemente à concessão de independência nacional à Ucrânia, antigo território do Império – tendo sediado inclusive sua capital, Kiev – uma posição que estava bem longe de ser isolada). A possível anexação hodierna da Ucrânia, direta ou encoberta, para integrar o espaço da Comunidade de Nações Independentes comandada pela Rússia, é uma operação imperialista do território imediatamente vizinho, que multiplica as contradições dos anexionistas.

Ignorar essa dimensão da crise, considerando-a “anacrônica”, em nome da “geopolítica internacional” ou qualquer disciplina assemelhada, é ignorar que Putin se referiu de modo bem explicito a ela na véspera do ataque à Ucrânia, inclusive em entrevistas com jornalistas ocidentais, que haviam adotado um tom agressivo em defesa da “soberania nacional” da Ucrânia: “A Ucrânia moderna foi inteiramente criada pela Rússia ou, para ser mais preciso, pelos bolcheviques, a Rússia comunista. Esse processo começou praticamente logo após a revolução de 1917, e Lênin e seus associados o fizeram de uma maneira extremamente dura para a Rússia – separando, cortando o que historicamente era terra russa. Ninguém perguntou aos milhões de pessoas que vivem lá o que eles pensavam” – foram suas palavras.

Toda a discussão de Putin sobre a história, desde o estabelecimento da URSS em 1922 até seu desmoronamento em 1991, foi uma argumentação para um objetivo pouco velado: a refundação da Federação Russa com base nas fronteiras da Rússia czarista. Tendo superado o trauma do colapso nacional, as classes dominantes russas estão agora voltando seu olhar para as antigas fronteiras da URSS, cujas fronteiras correspondiam, mais ou menos, às do território do império do czar.

Com exceção da Finlândia, da Polônia e dos três países bálticos, todos os povos do império czarista decidiram ficar com o novo Estado fundado com base na revolução de outubro de 1917. O território geral da Rússia czarista e o da União Soviética era, aproximadamente, co-extensivo. Putin anseia restabelecer as fronteiras não da União Soviética, mas as da Rússia desde tempos imemoriais. Falar sobre o desejo de Putin de restabelecer a União Soviética é uma mentira, já que o mesmo discurso prova amplamente que Putin é hostil à URSS e a vê, de acordo com quase todos os líderes da classe dominante da Rússia, como um desvio transitório do curso da história russa.

Putin aspira à uma reedição da Rússia czarista sem czar. Para este fim, ele inventa uma narrativa histórica que, por enquanto, se limita às relações entre a Rússia e a Ucrânia, mas não há dúvida de que, se for bem-sucedida no caso da Ucrânia, o establishment russo estenderá a outros antigos territórios czaristas. Nas contradições internacionais suscitas por essa política, e suas formulações ideológicas, tentam encontrar naturalmente seu lugar o deslocado Donald Trump e o tresloucado Jair Bolsonaro.

O epicentro da crise, porém, se situa no próprio sistema imperialista. A inadequação crescente da OTAN às relações internacionais abaladas tornava-se evidente à medida que suas operações militares culminavam em repetidos fracassos, revelando uma contradição histórica mais aguda. A dissolução da União Soviética e a abertura da China ao mercado mundial pareciam anunciar uma expansão excepcional do capitalismo, mas as sucessivas crises mundiais mostraram suas limitações intransponíveis: a contradição entre o monopólio financeiro e militar dos EUA, por um lado, e seu recuo sistemático no mercado mundial, pelo outro.

Na OTAN, o imperialismo norte-americano tinha confrontos mais frequentes com seus aliados, suas operações internacionais, como no Iraque, não mais conseguiam se apoiar em “coalizões internacionais”. Na crise ucraniana, a Rússia negociou com quatro ou cinco governos separadamente: os EUA, a Alemanha, a França e até a Turquia e a própria Ucrânia. A guerra ucraniana acentuará, primeiro em baixo do pano e depois em cima dele, a desintegração do aparelho político-militar ocidental.

O pano de fundo da crise ora bélica são as contradições da acumulação capitalista e a rivalidade entre os grandes capitais e entre os Estados que os representam. As sanções econômicas da OTAN contra a Rússia são o reverso da badalada “globalização”. Medidas econômicas “de exceção” são adotadas por países que temem se envolver em uma grande guerra comercial. A guerra cria a ameaça de um deslocamento do comércio e das finanças internacionais, já afetadas pelo golpe que as cadeias produtivas internacionais receberam no quadro da pandemia.

O governo Putin desencadeou operações militares sob a pressão de um impasse estratégico, da mesma forma que a OTAN buscou esse resultado e insistiu em provocá-lo, como uma saída para o seu. Rússia está sob o domínio de uma oligarquia e de uma burocracia sem outro título além da sua recente ascensão e expropriação da propriedade estatal, um capitalismo rastaquera que o capital internacional quer deslocar de forma absoluta ou relativa para seu próprio benefício.

O motivo da discórdia e da guerra não é a independência da Ucrânia, a atual é uma guerra pela reconfiguração política internacional de um mundo capitalista em crise e decadência. Politicamente, o internacionalismo proletário, porém, está ausente.

A presença, nesta crise mundial aprofundada, de uma estratégia internacionalista dos trabalhadores, em defesa de uma paz baseada na derrota das provocações militares imperialistas, da perspectiva de uma livre associação e complementação dos povos e nações, depende de um debate internacional que a esquerda, se for consequente, deve promover com urgência, que resulte numa estratégia anti-imperialista e anticapitalista, independente das burocracias e das oligarquias neocapitalistas, e unificada no mundo todo.

por Osvaldo Coggiola | a Terra a Redonda

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