Um ano de presidência de Joe Biden

Leia mais

Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Após quase um ano no cargo, fica claro que as promessas de uma virada progressista para mais justiça social não foram cumpridas

Alguns/algumas comentaristas pensaram que a presidência de Joe Biden seria a ocasião de uma virada keynesiana nos Estados Unidos. As mesmas ilusões e esperanças haviam surgido no início da presidência de Barack Obama em 2009.

Em ambos os casos, a eleição ocorreu em uma época em que os EUA atravessavam uma grave crise que poderia levar o governo a adotar medidas fortes e iniciar uma virada após décadas de políticas neoliberais.

A administração de Barack Obama poderia ter aplicado medidas coercivas contra as grandes empresas e em particular contra os grandes bancos e fundos de investimento que foram em grande parte responsáveis pela enorme crise que estourou a partir de 2007-2008. Além disso, Barack Obama havia prometido uma profunda reforma do sistema de saúde, previdência social, aposentadorias e a implementação de uma reforma tributária com o objetivo de cobrar dos mais abastados, a começar pelos 1% mais ricos, um pouco mais de impostos. Nada disto aconteceu.

No caso de Joe Biden, ele havia anunciado que pediria às maiores empresas e aos mais ricos que pagassem mais impostos, ele havia prometido medidas progressistas em termos de acesso a assistência médica, proteção social e um salário-mínimo por hora legal de 15 dólares…

Estas promessas lhe permitiram mobilizar uma parte do eleitorado que já não ia mais às urnas. No início de seu mandato, ele nomeou Bernie Sanders como presidente da Comissão de Orçamento do Senado, o que para alguns/algumas parecia ser um sinal da vontade de realmente implementar medidas progressivas. Outros/as, inclusivo eu mesmo, viram isso como uma forma de amordaçar Bernie Sanders.

Promessas não compridas

Após quase um ano no cargo, fica claro que as promessas de uma virada progressista para mais justiça social não foram cumpridas. Muito rapidamente o salário-mínimo de 15 dólares foi abandonado, e o salário-mínimo por hora permanece fixado em 7,25 dólares.

Nenhuma medida foi tomada para cobrar novos impostos sobre as grandes empresas e os mais ricos. Pior, uma medida adicional que favorece as famílias ricas está sendo proposta pela Administração Biden, e pasme, isto permite que uma série de eleito/as republicano/as denunciem a injustiça e o ardil da medida por favorecer os ricos. Trata-se de aumentar de $10.000 para $80.000 a quantia que um/uma contribuinte pode deduzir de seus impostos federais em compensação de impostos locais (municipais ou estaduais) pagos. De acordo com uma análise do Tax Policy Center [Centro de Política Fiscal], organismo não partidário, e do Center for a Responsible Federal Budget [Centro para um Orçamento Federal Responsável], 94 % dos benefícios do aumento do limite de abatimento do imposto de renda para $80.000 iriam para o quintil superior dos contribuintes do país – aqueles que ganham pelo menos $175.000 por ano – e 70 % para os cinco por cento superiores. A perda de receita para o Tesouro seria de US$ 275 bilhões por ano.

O salário-mínimo de 15 dólares foi logo abandonado, e o salário-mínimo por hora permanece em 7,25 dólares. O orçamento militar foi aumentado e é agora de 720 bilhões US$ com o apoio dos republicanos. Este é o maior orçamento desde a Segunda Guerra Mundial (apesar do desengajamento no Afeganistão). Na área de obras públicas, a administração Biden, com apoio republicano, aprovou um orçamento que favorece as grandes empresas de construção.

Deve-se lembrar que foi nos Estados Unidos que a pandemia do coronavírus resultou no maior número absoluto de mortes do mundo: mais de 820.000 mortes em 21 de dezembro de 2021. Apesar da extrema gravidade da situação, Joe Biden não tomou nenhuma ação que entrasse em conflito com os interesses da Big Pharma. Enquanto o governo detém a patente principal para a produção de vacinas de RNA mensageiros, ele se recusa a usá-la e a ter vacinas produzidas pelo setor público nos EUA ou em outros lugares (veja o quadro “Biden protege os interesses da Big Pharma às custas das pessoas no Norte como no Sul”). Toda a produção é deixada nas mãos da Big Pharma, e as patentes que as empresas privadas registraram não são suspensas.

A administração Biden também não ofereceu a patente que detém aos países que poderiam ter se beneficiado dela e que têm condição de produzir vacinas por conta própria se lhes for dada a oportunidade. Embora ele tenha dito em maio de 2021 que sua administração queria que a OMC abrisse as patentes, conforme solicitado por mais de 100 países do Sul, Biden não tomou nenhuma medida real para garantir que isso acontecesse.

A terceira dose de vacina no Norte e o apartheid de vacinas

Como os países da Europa Ocidental, os Estados Unidos estão organizando a injeção em massa de uma terceira dose da vacina (uma quarta dose está até sendo preparada, como o Estado de Israel já está fazendo) e a vacinação de crianças, enquanto a OMS pede que seja dada prioridade à vacinação das populações dos países do Sul, que têm apenas acesso muito limitado a ela.

Quanto à regulamentação financeira destinada a impor alguma disciplina aos grandes bancos e outras grandes empresas financeiras, nada foi feito. Pelo contrário, o laxismo está avançando. Em uma clara indicação de sua orientação favorável aos mercados financeiros e ao grande capital, Biden prorrogou o mandato dopresidente do Federal Reserve, Jerome Powell, que havia sido nomeado por Donald Trump. Ele também nomeou Janet Yellen, a ex-presidente da Reserva Federal, como secretária do Tesouro (o equivalente do Ministério da Fazenda). Este foi mais um sinal a favor das grandes empresas.

No início de dezembro de 2021, Saule Omarova, a mulher que deveria estar encarregada da regulamentação bancária como chefe do Office of the Comptroller of the Currency (Secretaria da Controladoria da Moeda), foi forçada a renunciar ao seu posto após uma campanha de desestabilização por parte de Wall Street e dos republicanos. O jornal Financial Times comentou assim: “Ela enfrentou uma reação negativa dos republicanos e da indústria bancária, com críticas focadas em sua formação e carreira acadêmica com propostas incluindo um sistema de conta bancária administrado pelo Estado”. Na realidade, ela não apenas enfrentou ataques dos republicanos, ela foi demolida por uma série de parlamentares democratas que estão tão ligados ao grande capital quanto seus colegas republicanos.

O programa Build Back Better [Construir de volta melhor] está sendo sabotado pela ala direita do Partido Democrata e muito provavelmente será abandonado. Biden havia prometido promover um importante programa de gastos para a justiça social e a proteção ambiental. Este programa, Build Back Better, conhecido por suas iniciais BBB, deveria ter sido aprovado ao mesmo tempo em que o grande plano de despesas de obras públicas que caiu no gosto do grande capital. Biden e a presidente do congresso Nancy Pelosi finalmente separaram os dois votos, enquanto a ala esquerda do Partido Democrata rejeitava esta separação. O plano de obras públicas foi aprovado com o apoio republicano e apesar da oposição de seis democratas de esquerda, incluindo Alexandria Ocasio-Cortez. Em caminho oposto, o programa Build Back Better está sendo sabotado pela ala direita do Partido Democrata e muito provavelmente será abandonado.

Este abandono do programa Build Back Better mostra a real natureza da política da administração Biden, que está em grande parte, econômica e socialmente, em continuidade com a dos presidentes republicanos, sejam G. W. Bush ou D. Trump. Em 1891, Friedrich Engels, em seu prefácio aos textos de Karl Marx sobre a Comuna de Paris, descreveu muito bem o sistema político dos Estados Unidos dominado pelos partidos Democrata e Republicano, que se alternam no poder e defendem a ordem capitalista.

A administração Biden também falhou, apesar da retórica bem-intencionada, em tomar medidas para reduzir o acesso às armas em um momento em que as taxas de homicídios estão aumentando acentuadamente (aumento de 30 % em 2021). Há 400 milhões de armas de fogo em circulação nos EUA.

Em relação aos estados que como o Texas aprovaram legislação hiper-repressiva sobre o aborto, a Administração Biden não está tomando medidas para defender a legislação federal descriminalizando o aborto e está se limitando a expressar sua discordância. Enquanto os estados, incluindo mais uma vez o Texas, decidem mudar as leis eleitorais para limitar os direitos de voto das classes populares e especialmente suas partes racializadas, a Administração Biden não faz nada.

Sobre os direitos dos migrantes e o acolhimento dos refugiados, a política da Administração Biden não é realmente diferente da de Trump. Em setembro de 2021, o enviado dos EUA ao Haiti, Daniel Foote, renunciou em protesto contra as expulsões “desumanas” pelos Estados Unidos de milhares de migrantes haitianos. Sua demissão foi um golpe para Joe Biden: sua política de expulsões em massa de migrantes haitianos para seu país é denunciada publicamente por seu próprio emissário.

Em termos de política internacional, a administração de Biden estende e confirma a adotada pela de Trump em questões centrais: apoio total ao regime sionista; agressividade em relação a Cuba e Venezuela. Recentemente, uma investigação do jornal New York Times revelou que o uso de drones na Síria, Iraque e Afeganistão resultou oficialmente na morte de mais de 1.400 civis. O número real é certamente muito mais alto. A Administração Biden deu continuidade à política de D. Trump a este respeito. No final de agosto de 2021, em Cabul, 10 civis foram mortos por um ataque com drone e soube-se em dezembro de 2021 que os responsáveis não seriam sancionados. Não havia provas suficientemente fortes para definir responsabilidades individuais, explicou em Washington o porta-voz do Pentágono, John Kirby, para justificar a falta de sanções. A administração Biden também apoia o regime militar do marechal Al-Sissi, fornecendo anualmente ao seu exército 1,3 bilhões de dólares em ajuda. Da mesma forma, Biden mantém relações estreitas com o regime ultrarreacionário saudita.

O retorno ao Acordo de Paris sobre o Clima e às negociações com o Irã sobre o nuclear não se traduziram em medidas fortes. Pelo contrário, Biden acaba de aumentar os subsídios à extração de petróleo e gás nos EUA, a fim de aumentar o volume de extração. Em relação ao Irã, os EUA não estão fazendo nenhuma concessão real, o que contribui para o apodrecimento da situação.

Por que não há um retorno keynesiano?

O principal fator é o estado da luta de classes. As classes populares e, em particular, os trabalhadores assalariados não tiveram um acréscimo em seu grau de organização e sua capacidade de ação. Isto é diferente dos anos 30, quando o movimento trabalhista estava em plena expansão nos EUA, com uma onda de greves e ocupações de fábrica, especialmente na indústria automobilística. Os sindicatos radicais estavam em ascensão. Como também as ideias socialistas. A URSS era um polo de atração, e o planejamento e controle público dos meios de produção pareciam ser uma solução melhor do que o capitalismo laissez-faire.

Para completar o quadro, devemos acrescentar que em 2020-2021 o governo (seja do Trump ou do Biden) colocou panos quentes, pagando indenizações importantes às classes populares e postergando o pagamento de uma parte significativa das dívidas (dívidas hipotecárias, dívidas estudantis, dívidas de aluguel…). Em 2020 e 2021, a pobreza diminuiu graças à assistência social de vários tipos. Isto teve um papel real de amortecedor social. As classes populares não foram forçadas a agir. Obviamente, alguns setores se mobilizaram e em alguns casos alcançaram vitórias, mas isto está longe de representar um marco.

As medidas «sociais» tomadas por Trump e depois por Biden não são estruturais, não constituem novos direitos, não são perenes. Se o programa Build Back Better fosse adotado, poderíamos considerar que alguns progressos sociais seriam alcançados, mas obviamente, na melhor das hipóteses, seriam muito limitados. Isto mostra que não estamos em um novo ciclo de tipo keynesiano onde o governo e a classe dos capitalistas teriam que fazer grandes concessões às classes trabalhadoras, que veriam seus direitos sociais progredirem e seus salários reais aumentarem.

A classe capitalista continua a enriquecer, embora a taxa de lucro não esteja no seu maior nível e uma grande parte do capital acumulado seja fictício e possa entrar em colapso como um castelo de cartas no caso de uma nova crise financeira.

A desigualdade continua a aumentar, com uma maior concentração da riqueza em benefício dos 1 % mais ricos.

A questão das dívidas

No terceiro trimestre de 2021, a dívida pública americana ultrapassou 28 trilhões de dólares, ou 125 % do PIB do país. Seja depois de 2008 em resposta à crise financeira ou a partir de 2020 em resposta à crise exacerbada pela pandemia do coronavírus, o governo americano aumentou a dívida pública de forma muito significativa. Não foram cobrados impostos de crise sobre as grandes empresas. Até agora, o aumento da dívida pública tem sido indolor porque as taxas de juros estão próximas de zero. Atualmente, a taxa de juros reais da dívida pública é até mesmo negativa, pois a inflação é superior a 5 %. A Reserva Federal aumentará gradualmente as taxas de juros, mas não haverá problemas sérios a curto ou médio prazo. Nos Estados Unidos, o volume da dívida pública continuará a aumentar sem causar grandes perturbações.

A questão das cobranças abusivas de dívidas sobre as classes trabalhadoras se tornará cada vez mais importante nos próximos anos

As dívidas das famílias da classe trabalhadora aumentaram nos últimos 10 anos, mas os cheques de ajuda social enviados pelo governo em 2020-2021 aliviaram temporariamente o ônus do pagamento. Além disso, tanto a administração Trump como a Biden suspenderam temporariamente o pagamento de uma série de dívidas: dívidas estudantis, dívidas hipotecárias em alguns casos, algumas dívidas de aluguel também, sem esquecer algumas dívidas de pequenas empresas. Mas estas medidas vão acabar e gradualmente a situação vai se tornar mais tensa. Alguns vencimentos são conhecidos: maio de 2022 para dívidas estudantis, que totalizam mais de 1,6 trilhão US$. Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez estão pedindo a anulação totalMovimentos para o cancelamento destas dívidas estão em andamento ou se organizando.

No que diz respeito à dívida estudantil, Barack Obama fez alguns cancelamentos parciais (cujo custo foi suportado pelo Governo e não pelos financiadores), e é possível que Biden faça o mesmo. Isso dependerá das mobilizações. A ver vamos.

A dívida de grandes empresas privadas tem aumentado acentuadamente nos últimos anos. Se as taxas de juros subirem, é possível que ocorram falências e que uma nova crise financeira seja desencadeada.

Conclusões

A política da administração Biden, além dos efeitos de anúncios e promessas não cumpridas, é em grande parte continuadora da ofensiva do capital contra as classes populares. Não há uma virada social que realmente tenha começado e que rompa com 40 anos de políticas neoliberais. Ninguém à esquerda vai sentir falta do Trump, mas ter ilusões sobre Biden é um limite que não podemos ultrapassar.

Biden e o Partido Democrata estão decepcionando setores das classes populares que os apoiaram contra Trump e os candidatos republicanos no outono de 2020. Durante 2021, em várias eleições parciais, esta decepção foi expressa nas urnas e os republicanos fortaleceram sua posição. As eleições de outubro de 2022 provavelmente resultarão em uma perda da maioria democrata no parlamento e no Senado, o que aumentará a tendência para a continuidade. Uma vitória republicana nas eleições presidenciais de 2024 é possível.

Será que a esquerda dentro e fora do Partido Democrata encontrará uma maneira de se fortalecer e quebrar o sistema bipartidário tão bem descrito por Friedrich Engels 130 anos atrás? Esta é a grande questão histórica. Será que o movimento popular, que nos Estados Unidos teve momentos fortes como o Black Lives Matter e as mobilizações feministas, será capaz de se consolidar? Será que os trabalhadores vão conseguir marcar pontos contra os patrões? Será que a juventude entrará num ciclo de lutas que estenderão o Black Lives Matter, que lidarão com o meio ambiente, com dívidas… As respostas a estas perguntas são abertas e são de grande importância para todos os povos do planeta.

por Eric Toussaint  | Tradução: Alain Geffrouais.

Publicado originalmente no site do CADTM.

VOZ DO PARÁ: Essencial todo dia!

- Publicidade -spot_img

More articles

- Publicidade -spot_img

Últimas notíciais