Em surdina, avança no Congresso projeto que permite ao Estado especular com moedas virtuais, além de estimular sua mineração. País expõe-se ao risco de colapso financeiro semelhante ao de El Salvador, e de subsidiar desperdício brutal de energia
A Câmara dos Deputados está prestes a aprovar, em definitivo, um projeto de lei (PL 4401/2021) que, dentre outras coisas, autoriza órgãos e entidades da administração pública a realizar operações com criptomoedas e cripto-ativos. Apoiado por grandes empresas nacionais e internacionais do ramo, o texto ainda prevê amplos incentivos, na forma de isenções fiscais, para a chamada “mineração” de criptomoedas –o processamento computacional de cripto-ativos.
Sob inúmeros aspectos, se transformadas em lei, essas duas medidas podem contribuir para produzir uma verdadeira catástrofe econômica, ambiental e enérgica no país.
As criptomoedas são ativos especulativos de alta volatilidade e, portanto, de alto risco. Esta característica, junto da falta de regulação e supervisão normativa deste espaço, tem contribuído para que inúmeros golpes, esquemas e crimes ocorram neste ambiente, em todo mundo: evasão de divisas, elisão fiscal, ocultamento de riqueza, roubo e extorsão on-line. Por isso, para além de investidores e corretores, engenheiros e tecnólogos, nerds e aficionados, o ambiente das cripto tem atraído criminosos de toda estirpe: de pequenos golpistas a grandes narcotraficantes colombianos e magnatas russos. Os casos abundam nos veículos de comunicação.
Liberar a administração pública para se engajar neste espaço pode funcionar como um incentivo adicional para a prática de corrupção e de atividades ilícitas com dinheiro público. Não fosse o bastante, para além do risco de facilitação de esquemas de corrupção, a alta volatilidade desses ativos afeta gravemente a administração racional das contas públicas, cujas reservas econômicas podem, no intervalo de um dia, ser reduzidas a pó, fazendo colapsar sua ação econômica.
Um caso emblemático é o de El Salvador que, depois de adotar o bitcoin como moeda de curso legal, viu suas reservas caírem 1/3, aumentando o risco de calote de sua dívida soberana. O país já perdeu cerca de US$ 40 bilhões só com a desvalorização recente do bitcoin, algo que tem contribuído para ampliar a instabilidade política e social por lá.
Não há, em suma, nenhum argumento racional, para além do desejo de lucro de alguns poucos especuladores, para permitir que a administração pública, direta e indireta –o que inclui a União, Estados e municípios–, especule com dinheiro público em bitcoin e outras criptomoedas.
Outro problema gravíssimo é a redução a zero, até o fim de 2029, de vários tributos (Pis/Pasep, Cofins, Imposto de Importação e IPI) sobre a importação, industrialização ou a comercialização de máquinas (hardware) e ferramentas computacionais (software) utilizadas nas atividades de processamento, preservação e mineração de ativos digitais.
A chamada “mineração” é o processo por meio do qual tais “coisas digitais” ou “cripto-ativos” são, na prática, produzidos. Por várias razões, esse processo consome uma quantidade descomunal de energia. Para se ter uma ideia, estimativas de importantes órgãos internacionais dão conta que só o sistema do bitcoin (a 1ª, maior e a mais importante dentre as criptomoedas, mas apenas mais uma dentre milhares delas) consome anualmente o equivalente a todo o consumo de energia de países inteiros como Argentina, Irlanda ou Nigéria. Para processar uma única transação o sistema mobiliza a mesma quantidade de energia consumida por uma família estadunidense média ao longo de 74 dias.
Cumpre recordar que muitos países se utilizam, para produzir energia, de combustíveis fósseis e termoelétricas. Isso faz ampliar ainda mais as emissões de carbono relativas a essas atividades e, assim, seu grave impacto ambiental. Estima-se que só a rede bitcoin é responsável, sozinha, por emitir cerca de 114 milhões de toneladas de dióxido de carbono por ano –o equivalente ao produzido por países inteiros como a República Tcheca.
Para piorar, como o hardware de mineração se torna rapidamente obsoleto, a mineração de criptomoedas também cria uma quantidade significativa de lixo eletrônico. Isso é especialmente verdadeiro para mineradores que se utilizam de aplicações de circuito integrado específico (Asic), que são máquinas projetadas especialmente para minerar as criptomoedas mais populares, algo muito comum neste ambiente. Estimativas apontam que o bitcoin produz aproximadamente 35.000 toneladas de lixo eletrônico todos os anos.
Mesmo quando a maior parte da energia utilizada para essa atividade –que, frise-se, não atende a nenhuma necessidade humana ou social vital– é “limpa”, o impacto se dá pelo lado energético, uma vez que a energia “limpa” falta, na outra ponta, para atividades e necessidades produtivas e sociais mais prementes.
No Irã, por exemplo, houve grandes apagões por conta da mineração de bitcoins. Depois de blecautes, o governo do país fechou empreendimentos de mineradores sob acusação de causarem sobrecarga no sistema elétrico. O Cazaquistão também sofreu muitos blecautes por causa de mineradores de criptomoeda. O consumo de energia elétrica no país subiu 8% em 2021, quatro vezes mais do que a expectativa do governo.
Portanto, para além dos gravíssimos danos ambientais, aprovar o incentivo a essa atividade fará ampliar ainda mais a crise energética que afeta atualmente o Brasil e outros países, e subir ainda mais o preço já alto da energia.
Por essas e outras razões, a regulação das criptomoedas tem sido motivo de muita polêmica em todo o mundo. Em alguns países, como a China (que já foi a maior cripto-mineradora do mundo), elas foram totalmente banidas em 2021. O mencionado projeto de lei, recheado de problemas gravíssimos, prestes a ser aprovado no Brasil sem a devida discussão pública, é um verdadeiro escândalo.
O texto que está prestes a ser votado no plenário da Câmara dos Deputados revela alguma boa intenção quanto à necessidade de regulamentação das criptomoedas e cripto-ativos, de modo a possibilitar uma maior supervisão dessa atividade. No entanto, se aprovadas, essas duas medidas –a autorização para realização de operações com cripto-ativos pela administração pública e o incentivo público direto, por meio de isenções, à mineração com criptomoedas– representam uma verdadeira tragédia anunciada. Algo deve ser feito para evitar que isso ocorra enquanto ainda é tempo.
Voz do Pará com informações do Poder 360