Disputa presidencial registra recordes de assassinatos por motivação política, tentativas de intimidação contra candidatos e pesquisadores e de assédio eleitoral no trabalho
A violência política não é uma novidade em disputas eleitorais brasileiras, mas raramente o tema se tornou tão central como na campanha nacional de 2022, que foi marcada por vários assassinatos por desavenças políticas, tentativas de intimidação, agressões a funcionários de institutos de pesquisa e explosão de denúncias de assédio eleitoral.
Enquanto em pleitos anteriores a maioria dos casos de violência política costumavam ser restritos a disputas locais, muitos dos casos mais chamativos neste ano foram diretamente ligados à disputa presidencial.
Na reta final do segundo turno, o noticiário foi dominado pelo ataque de um aliado do presidente Jair Bolsonaro contra uma equipe de agentes da Polícia Federal. Armado com granadas e um fuzil de assalto, o ex-deputado Roberto Jefferson (PTB) se recusou a cumprir uma ordem de revogação da sua prisão domiciliar e feriu dois agentes. Ele só se entregou após oito horas de cerco. Acabou indiciado por quatro tentativas de homicídio. Durante a cobertura do caso, um cinegrafista de uma afiliada da TV Globo foi agredido por bolsonaristas.
Inicialmente, o bolsonarismo tentou vender Jefferson como um “mártir” da extrema direita, mas o Planalto logo se afastou do violento aliado quando a gravidade do caso começou a afetar negativamente a campanha à reeleição do presidente.
Mas o recuo de Bolsonaro foi um gesto raro. Assim como em 2018, quando falou em “fuzilar a petralhada”, Bolsonaro continuou apostando em discursos de ódio político em 2022. Em maio, o presidente disse, ao mencionar um ato pró-Lula: “um tiro só ou uma granadinha mata todo mundo”. Após o primeiro turno, o presidente também convocou apoiadores a um cerco a seções eleitorais em 30 de outubro.
Um levantamento da Anistia Internacional apontou que nos três meses que precederam o primeiro turno, em 2 de outubro, houve o registro de pelo menos um caso de violência política a cada dois dias, sendo que 88% dos casos ocorreram apenas em setembro, incluindo assassinatos, ameaças contra eleitores, agressões físicas e restrições na liberdade de movimento de candidatos.
Outros levantamentos mostram números ainda mais sombrios. Em 5 de outubro, o Observatório da Violência Política e Eleitoral no Brasil da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) havia contabilizado pelo menos 212 casos de violência política entre julho e setembro deste ano, um aumento de 110% em relação ao trimestre anterior.
Segundo o levantamento, lideranças de 29 partidos foram atingidas por algum tipo de violência no terceiro trimestre de 2022. O PT foi o partido com o maior número de alvos. Foram 37 casos (17,5%). Em seguida, apareceu o PSOL, com 19 (9%).
Já as organizações Justiça Global e Terra de Direitos registaram 247 episódios de violência política em 2022 — número 400% maior do que a quantidade de casos registrados em 2018. Pelo menos 121 casos ocorreram entre 1º de agosto e 2 de outubro.
“Temos visto mais ataques dirigidos a partidos de esquerda ou de centro-esquerda, ou a funcionários eleitos, comprometidos com a defesa dos direitos humanos, a comunidade LGTB+ ou a luta contra o racismo”, disse Glaucia Marinho, da Justiça Global.
Uma pesquisa Datafolha divulgada em 15 de setembro mostrou que 70% dos brasileiros disseram ter medo de serem agredidos fisicamente por causa de suas opiniões políticas.
Reações
Em meio ao acirramento da reta final do primeiro turno, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), vetou, por unanimidade, o transporte de armas e munições por colecionadores, atiradores e caçadores (CAC’s) no dia das eleições, bem como nos dias anterior e posterior à votação.
Antes, em 30 de agosto, o plenário do TSE já havia decidido proibir o porte de armas num raio de 100 metros das seções eleitorais.
Os casos de violência também provocaram repercussão internacional. No final de setembro, oito especialistas das Nações Unidas pediram para que as autoridades e lideranças políticas do Brasil garantissem que as eleições fossem “pacíficas e que a violência relacionada com as eleições seja prevenida”.
“Estamos cientes dos informes sobre a violência política e estamos fortemente preocupados com o relato de violência contínua que envolve partidos políticos, apoiadores e candidatos”, disse a porta-voz do escritório da ONU para Direitos Humanos, Ravina Shamdasani.
O governo americano também se manifestou. “Temos visto relatos recentes de violência. E, embora o direito ao protesto seja fundamental em qualquer democracia, os Estados Unidos condenam qualquer violência e exortam os brasileiros a fazerem suas vozes serem ouvidas de forma pacífica. Acreditamos que isso é importante nesta eleição”, afirmou a porta-voz da Casa Branca, Karine Jean-Pierre, durante uma coletiva de imprensa.
Nesta semana, durante a tradicional audiência geral que acontece na Praça São Pedro, o papa Francisco fez uma menção especial ao Brasil e afirmou que pede à Nossa Senhora Aparecida que cuide e proteja o povo brasileiro, o livrando “do ódio, da intolerância e da violência”.
No dia seguinte, foi a vez de o presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Dom Walmor Oliveira de Azevedo, reforçar a mensagem do papa e publicar uma mensagem em vídeo denunciando o ódio, a intolerância e a violência durante a eleição deste ano.
“Vamos dar um basta aos sentimentos que estão contaminando o processo eleitoral, dividindo famílias, rompendo amizades. Até templos foram profanados, com sacerdotes ao serviço do altar desrespeitados”, disse Dom Walmor.
Em 12 de outubro deste ano, dia de Nossa Senhora Aparecida, Bolsonaro visitou a na Basílica de Aparecida (SP) para acompanhar as celebrações religiosas. Apoiadores do presidente promoveram tumultos do lado de fora do tempo e chegaram a hostilizar jornalistas da TV Aparecida que cobriam a cerimônia.
Tentativas de intimidação, agressões
Em 20 de setembro, um pesquisador do Datafolha foi agredido com chutes e socos por um bolsonarista em Ariranha (SP). O pesquisador entrevistava uma pessoa, quando um apoiador de Bolsonaro identificado como Rafael Bianchini se aproximou e, aos gritos, passou a exigir que também fosse entrevistado.
Dias antes, em um município do Rio Grande do Sul, outro pesquisador do Datafolha foi levado para averiguação por um policial que se identificou como eleitor de Bolsonaro.
Em agosto, uma entrevistadora do Datafolha foi perseguida em Belo Horizonte (MG) por quatro homens. Gritando “comunista” e “esquerdista”, os homens tentaram pegar o tablet que ela usava para realizar as pesquisas.
Segundo a agência Pública, houve pelo menos 32 episódios de intimidação ou violência contra entrevistadores de institutos de pesquisa, como Datafolha, Ipec e Quaest, até 5 de outubro.
Em outros casos, a violência foi direcionada contra eleitores. Em 31 de agosto, um PM atirou em um fiel dentro de um templo evangélico em Goiânia. No episódio, o PM Vitor da Silva Lopes atirou na perna de Davi Augusto de Souza, que havia questionado o fato de o pastor responsável pelo tempo distribuir um texto para os fiéis não votarem em candidatos “vermelhos”.
Em julho, uma caminhada com Marcelo Freixo (PSB), candidato ao governo do Rio de Janeiro, teve que ser encerrada abruptamente após apoiadores armados de um deputado estadual bolsonarista aparecerem no local e fazerem ameaças.
No mesmo mês, um bolsonarista foi detido após lançar fogos de artifício contra apoiadores de Lula durante um ato político do petista na Cinelândia, no Rio de Janeiro. Em junho, vários apoiadores de Lula já haviam sido atingidos por um líquido descrito como “água de esgoto” lançado por um drone que sobrevoou um evento da pré-campanha do petista em Minas Gerais, que contou com o ex-prefeito Alexandre Kalil (PSD), pré-candidato ao governo mineiro. O suspeito de organizar o ataque, o agropecuarista Rodrigo Luiz Parreira, foi preso uma semana depois.
Depois desses incidentes, o comando da campanha de Lula decidiu reforçar a segurança, passando a adotar detectores de metal e erguendo muros em volta dos comícios do petista.
Em setembro, o deputado federal Paulo Guedes (PT-MG) relatou que uma carreata organizada por sua campanha foi alvo de disparos em Montes Claros, no norte de Minas Gerais. No mesmo mês, Ianário Pereira Souza Rocha, motorista da candidata a deputada estadual Sabrina Veras (MDB), foi morto a tiros durante um ato político em Fortaleza (CE).
Assassinatos
Foram registrados pelo menos cinco assassinatos por desavenças políticas envolvendo a disputa presidencial durante a campanha e a fase pré-eleitoral em 2022.
O caso que ganhou maior repercussão envolveu um dirigente local do PT de Foz do Iguaçu (PR), que foi morto por um apoiador de Jair Bolsonaro em julho. Na ocasião, o agente penitenciário Jorge José da Rocha Guaranho invadiu a festa de aniversário do guarda municipal Marcelo Arruda, que celebrava seus 50 anos com temática de apoio a Lula. Guaranho disparou três vezes contra o petista, que ainda conseguiu revidar. As redes sociais do agente penitenciário mostram que ele seguia fielmente a cartilha do bolsonarismo.
Em 7 de setembro, foi a vez de o bolsonarista Rafael Silva de Oliveira matar a facadas e a golpes de machado Benedito Cardoso dos Santos, um apoiador de Lula, na zona rural de Confresa (MT). O delegado responsável pelo caso disse que os dois homens trabalhavam juntos em uma propriedade rural. “O que levou ao crime foi a opinião política divergente. A vítima estava defendendo o Lula e o autor, defendendo o Bolsonaro”, disse o delegado.
Menos de três semanas depois, em Cascavel (CE), outro assassinato. Segundo as investigações, Edmilson Freire da Silva entrou em um bar da cidade perguntando quem dos presentes votaria em Lula. O caseiro Antônio Carlos Silva de Lima, que teria respondido positivamente para a pergunta, acabou assassinado a facadas. Na denúncia apresentada pelo Ministério Público do Ceará (MP-CE), os promotores concluíram que “uma vida foi ceifada por divergência política”.
No mesmo mês, Hildor Henker, de 34 anos, um apoiador de Jair Bolsonaro, foi esfaqueado na cidade Rio do Sul (SC) por um homem de 58 anos que era apoiador do PT. Segundo informações da polícia, os homens teriam começado a discutir por conta de “política e desavenças familiares antigas”.
Após o segundo turno, em 5 de outubro, a polícia prendeu Luiz Antônio Ferreira da Silva, de 42 anos e apoiador de Lula, pelo assassinato a facada de José Roberto Gomes Mendes em Itanhaém, no litoral de São Paulo. Os dois dividiam uma residência. Segundo a polícia, o crime ocorreu após os dois iniciarem uma briga física quando a vítima, que criticou o PT.
Ataque a urnas
Ainda em 2018, Jair Bolsonaro instrumentalizou críticas às urnas eletrônicas e ao TSE para agitar sua base radical e tentar desacreditar o sistema eleitoral. Em quatro anos, a estratégia se tornou parte da cartilha básica do bolsonarismo.
Em meio ao discurso agressivo de Bolsonaro ao sistema, ocorreram vários incidentes durante a votação do primeiro turno, incluindo atos de vandalismo contra urnas e agressões a mesários.
Em Goiânia (GO), um homem usou um pedaço de madeira para arrebentar uma urna logo depois de votar. Ele foi posteriormente preso. Em Campo Grande (MS), um homem chegou a colar as teclas de uma urna eletrônica. Um caso similar ocorreu em Jundiaí (SP), no qual um eleitor colou as teclas 1 e 3 para impedir que outros eleitores votassem no PT.
Assédio eleitoral
Outra marca da campanha de 2022 foi a explosão de denúncias de assédio eleitoral envolvendo empregadores utilizando formas de pressão ilegal sobre o voto de funcionários.
Na quinta-feira (27/10), a quatro dias do segundo turno, o Ministério Público do Trabalho já havia contabilizado mais de 1.633 denúncias do tipo, envolvendo mais de 1.200 empresas. O número é oito vezes maior que o registrado em todo o período eleitoral de 2018, quando foram recebidas pouco mais de 200 denúncias.
Mais de 1.500 denúncias em 2022 foram encaminhadas ao MPT depois do primeiro turno, quando a disputa se afunilou entre os candidatos Lula e Jair Bolsonaro.
O estado que registrou o maior número de denúncias é Minas Gerais, segundo maior colégio eleitoral do país considerado decisivo na disputa presidencial. Foram pelo menos 449 denúncias em Minas. O Paraná, que ocupa a segunda posição em denúncias, registrou pelo menos 215. Mas ambos ficam atrás de Santa Catarina na relação de denúncias por proporção de eleitores. Foram 29,7 por 1 milhão de eleitores catarinenses.
Dez denúncias em Santa Catarina envolveram apenas uma empresa: o grupo têxtil Altenburg, com sede em Blumenau. Segundo o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Fiação e Tecelagem de Blumenau (Sintrafite), o proprietário da empresa, Rui Altenburg, mandou interromper a produção em setembro e reuniu os trabalhadores para fazer críticas a Lula e exaltar Bolsonaro. Ainda segundo a denúncia, Rui Altenburg disse que a manutenção dos empregos dos funcionários dependeria da reeleição do atual presidente.
A cidade mineira de Sete Lagoas registrou 120 denúncias. Segundo informações do MPT, comerciantes da cidade teriam se organizado para decretar um feriado informal para os trabalhadores em 31 de outubro caso o presidente fosse reeleito.
Mas nem todas as denúncias envolvem exclusivamente empresas. Em Caratinga (MG), o prefeito Wellington Moreira de Oliveira (PSD) foi acusado de pressionar servidores locais a participarem de um ato pró-Bolsonaro. “Aqueles que disserem que não vão estar ou disserem que vão estar e não comparecerem, é um direito deles. Mas a gente vai ter uma conversa com eles depois”, disse Oliveira em um áudio distribuído aos servidores.
Em Carmo do Cajuru, também em Minas, o prefeito local, Edson Vilela (PSB), foi alvo de uma ação do MPT após ser acusado de obrigar 100 servidores a assistirem a um vídeo em que ele aparecia pedindo votos para Bolsonaro.