Apontamentos sobre as novas formas de assistir televisão
Serialização e quantidade de títulos
Já em 2015, a palavra do ano eleita pelo Collins Dictionary foi binge-watch, em tradução livre, maratonar.
O processo, que já havia começado no início dos anos 2000 a partir da comercialização de boxes de DVD com temporadas completas de séries, foi magnificado com o advento do streaming, principalmente após o estouro da Netflix.
Maratonar já era costumeiro para certa parcela de telespectadores com algum poder aquisitivo quando as plataformas (pelo preço barato de suas mensalidades) ampliaram o acesso a esta possibilidade, democratizando o processo, de certa forma.
Evidentemente, a pandemia elevou este hábito a estatísticas estratosféricas. Ao contrário do fenômeno das lives, nascido no seio do lockdown mas já em avançado estado de decomposição, o streaming conseguiu assegurar sua permanência – quer seja como modelo de negócio para os grandes conglomerados de entretenimento, quer seja como parte integrante da vida dos usuários.
Embora sua força não represente um ultimato para os outros modelos (TV aberta, por satélite e a cabo), o streaming é definitivamente a mais popular e cristalizada forma de assistir televisão no tempo corrente, e as séries são o seu formato preferencial.
Ao contrário da TV aberta, no ar 24 horas por dia mas com uma programação sobre a qual não interferimos, o serviço on demand faz com que nos relacionemos com o aparato de maneira diversa. Não “ligamos” a Netflix para nos distrair enquanto cozinhamos, como é possível ser feito com o rádio ou o programa da Fátima Bernardes. É preciso uma dedicação exclusiva para a fruição – ligar o computador, acessar a página, selecionar o programa. Uma série de mecanismos e imposições não exigidas pela televisão de antanho.
É do interesse dos Amazon Primes e Globoplays da vida que estejamos sempre voltando para perambular no ambiente da plataforma. Assim, aumenta a chance de vermos alguma outra coisa, além daquilo previamente programado. Daí a importância da serialização para o modelo, criando este movimento de eterno retorno – importantíssimo, para que não cancelemos a assinatura após o final de uma série favorita.
O streaming, para fugir do fastio que a TV aberta pode causar, joga todas as suas fichas no excesso. Muitas séries, muitos episódios, muitas temporadas, divididas em até duas partes. A fartura da oferta amplia nossas escolhas, mas pode também levar à insatisfação. Se apuro estético, coerência narrativa e responsabilidade ética são colocados em segundo plano, de que adianta ter mil títulos no catálogo?
Quem mais perde com a febre comercial pela serialização é a própria linguagem.
Histórias que caberiam melhor em um filme de hora e meia, duas horas, se estendem por até dez episódios, temporada após temporada. Woody Allen, por exemplo, sentiu grande dificuldade ao fazer uma série (Crise em seis cenas, Amazon Prime). Declarou à época do lançamento, em 2016, que não retornaria à TV, porque se deu conta da dificuldade de pensar a narrativa para o formato, bem diferente de como funciona um filme.
No início dos anos 2000, vários autores do cinema migraram para a TV, sentindo ali um ambiente mais adulto. A possibilidade de trabalhar em narrativas mais longas, aprofundando temas e personagens de uma maneira que o infantilizado cinema daquele tempo não estava interessado em larga escala.
Bryan Singer foi um dos diretores que fez a passagem ao se tornar produtor executivo de House. O diálogo das desventuras do Sherlock Holmes do diagnóstico médico entre TV e cinema era tão evidente que o primeiro episódio da sexta temporada foi uma espécie de Um Estranho no ninho; um episódio de hora e meia que poderia ser um filme.
Hoje acontece o oposto. Suspicion e The Afterparty, ambas da Apple TV+, funcionariam melhor se fossem um filme e não nos fariam perder tanto tempo. A primeira, mais uma série israelense adaptada, é tão mal organizada que, já no segundo episódio, se descobre como irá terminar. A outra, um Rashomon histérico, confunde com as longas reencenações da mesma situação. O que poderia ser de fato engraçado termina apenas bobo e repetitivo.
A contramão é possível (e recomendável). A sexta e última temporada da série policial britânica Luther será um filme. Provavelmente por terem entendido os criadores do programa que não há mais o que acrescentar ao personagem, decidiram apenas dar um desfecho à sua trajetória (sem esticar este momento desnecessariamente). É um presente aos fãs e uma homenagem ao bem-sucedido histórico da série. Além disso, Idris Elba, o intérprete do protagonista, já realizou o mesmo movimento, migrando com êxito da tela azul para a prateada.
Como seguem circulando rumores de que o próximo 007 pode ser interpretado por um ator negro (e, neste caso, Elba seria a escolha natural para o papel), bem fizeram os executivos da BBC em oferecer a ele um filme, mais encaixável em uma agenda concorrida do que outra temporada de quatro episódios. Mais vale um Luther na mão do que um James Bond voando.
VOZ DO PARÁ: Essencial todo dia!