O baile de Bourdieu

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Comentário sobre o livro “O baile dos celibatários”, de Pierre Bourdieu

Pierre Bourdieu (1930-2002) já estava doente e talvez tenha decidido “limpar as gavetas” antes de partir – ou, ao menos, tentar deixar o mínimo possível de inéditos. Ele, como é sabido, gostava de revisar e retrabalhar exaustivamente seus textos, reescrevendo vários deles.

Morreu dois meses antes de O baile dos celibatários ser publicado, tendo escrito uma introdução em julho de 2021, mapeando o conteúdo da obra, explicando que os trabalhos remetem em três ocasiões ao mesmo problema, porém, em cada caso, com “um instrumental teórico mais poderoso porque mais geral e, ainda assim, mais próximo da experiência”. Portanto, podem ser de interesse para aqueles que queiram acompanhar uma investigação segundo a lógica de seu desenvolvimento e convencê-los de que “quanto mais a análise teórica se aprofunda, mais se aproxima dos fatos observados”.

Pierre Bourdieu, ao examinar a crise da sociedade camponesa no Béarn, sua terra natal, região rural do sudoeste francês, próximo aos Pirineus, em três artigos, apresentou-os como “uma espécie de Bildungsroman intelectual”.

O primeiro texto, “Celibato e condição camponesa” foi publicado em Études rurales (1962), “As estratégias matrimoniais no sistema das estratégias de reprodução” nos Annales (1972), enquanto “Reprodução proibida. A dimensão simbólica da dominação econômica” em Études rurales (1989). Há, ainda, um posfácio, “Uma classe objeto”, originalmente divulgado em Actes de la recherche en Sciences Sociales (1977).

Sua análise é matizada a partir de uma questão fundamental: como é possível que, em uma sociedade assentada tradicionalmente no direito dos primogênitos, sejam justamente estes que ficam solteiros? No artigo inicial elabora o que chama de “um Tristes Trópicos às avessas” – ao contrário de Lévi-Strauss que saiu da França para tornar-se etnólogo no Brasil, experimenta, nas palavras de Heloísa Pontes, “a potência da etnologia em sua terra natal” –, entrevistando velhos solteiros de sua geração e da de seu pai, que o acompanha em grande parte delas, falando bearnês e lhe ajudando, “com sua presença e suas intervenções discretas, a suscitar a confiança e a confidência”. Acrescenta que a contenção objetivista de seu propósito se deve, em parte, “ao fato de me sentir cometendo algo como uma traição – o que me levou a recusar, até o presente momento, toda e qualquer reedição de textos cuja publicação em revistas acadêmicas de circulação restrita protegia de leituras mal-intencionadas ou voyeuristas”.

“As estratégias matrimoniais no sistema das estratégias de reprodução” marca de forma manifesta a ruptura com o paradigma estruturalista através da passagem da regra à estratégia, da estrutura ao habitus e do sistema ao agente socializado, “ele próprio habitado ou assombrado pela estrutura das relações sociais de que é produto”. Publicado em Annales, uma revista de história, “para marcar melhor a distância em relação ao sincronismo estruturalista”.

“Reprodução proibida. A dimensão simbólica da dominação econômica” permite compreender de forma clara a unificação do mercado de bens simbólicos em escala nacional, condenando a “uma brusca e brutal desvalorização aqueles que estavam ligados ao mercado protegido das antigas trocas matrimoniais controladas pelas famílias”. A busca da parceira vai depender, então, diretamente da iniciativa do interessado – ver, a respeito desse conjunto inicial de pesquisas de Bourdieu, o verbete “Béarn”, de autoria de Denis Baranger, no já citado Vocabulário Bourdieu (p. 52-55).

Pierre Bourdieu mostra o êxodo das jovens que já não querem mais trabalhar em ofícios de camponeses e fala da exclusão do mercado das trocas matrimoniais de um grande contingente de primogênitos solteiros ou na faixa dos 30 anos. No baile, que representa um verdadeiro choque de civilizações, eles ficam ao redor da pista, mas não dançam, privilégio reservado aos mais jovens. Através do baile o mundo da cidade penetra na vida do campo, revelando seus modelos culturais, sua música, suas técnicas corporais. As mudanças nos costumes, impostas pela vida moderna, tornaram obsoletas as práticas tradicionais, convertendo este livro em uma obra íntima e bela e, o que é mais relevante, em trabalho etnográfico de primeira linha.

Merece ser destacada nessa cuidadosa edição a apresentação de Carolina Pulici (“A derrocada simbólica da terra natal”) e a nota da contracapa de Graziela Perosa, ambas docentes na Unifesp, bem como as orelhas, de autoria da professora Heloísa Pontes, da Unicamp.

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