Industry: exuberância e perversidade do capitalismo

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
A série destrincha o ambiente tóxico, machista e racista dos locais corporativos

Se você achava que o cramulhão seria uma exclusividade pantaneira, bem-vindo a um território em que pactos com o demônio são feitos a todo momento e a alma de cada um pode valer apenas alguns tostões, a depender do lance e da aposta.

Na Inglaterra, este verdadeiro inferno sobre a terra está no coração da City londrina, nas imediações da Lombard Street, entre as estações de Bank e Liverpool Street. A exemplo de Wall Street, ali latejam as veias a determinar os rumos daquela instância abstrata que insiste em determinar até mesmo o que sonhamos: o mercado. (E já peço desculpas por incluir as palavras “coração” e “mercado” no mesmo parágrafo.)

Neste cenário inóspito se desenvolvem as tramas de Industry, série da HBO que acaba de estrear sua segunda temporada. Na ressaca da pandemia, as desventuras dos jovens estagiários que lutavam por uma vaga no Banco Pierpoint retornam para mais um ciclo. A cruel batalha empreendida pelo posto de trabalho fixo da primeira temporada ganha novo impulso e nos perguntamos do que serão eles agora capazes, com mais poder e responsabilidade nas mãos. Não é errado apostar que, entre mortos e feridos, não se salvará ninguém, mais uma vez. A cada novo episódio, uma nova lição era dada – terão os protagonistas aprendido algo com elas?

A série destrincha o ambiente tóxico, machista e racista dos ambientes corporativos. Neles, clichês como “vestir a camisa” e “trabalho de equipe” significam apenas a concordância e submissão a regras tácitas de comportamento e convivência não raro aviltantes. Especialmente mulheres e qualquer um que não esteja dentro do padrão da heterocisnormatividade branca ocidental são as principais vítimas deste vade mecum.

Até mesmo o influente gerente do setor de vendas de ações, de ascendência asiática, desempenhando o papel de mentor da protagonista Harper, rememora com amargura a única vez em que o primeiro chefe o elogiou, no início de sua trajetória de sucesso: “Esse chinesinho nasceu para vender”.

Como os tempos agora são outros, os antigos caçadores podem se tornar caça da noite para o dia e seu destino dependerá de um polegar para cima ou para baixo, como nas arenas romanas vida e morte de gladiadores eram decididas ao bel prazer do imperador. Um perpetrador de assédio será rifado ou salvo, a depender da percepção pública desejada pela empresa ou da influência que possuir com as instâncias superiores do organograma hierárquico.

Industry é uma série ambientada nas entranhas do mercado financeiro que conta o dia a dia de vendedores; figuras que, a despeito de sua importância dentro das dinâmicas comerciais, representam uma categoria da força de trabalho que nada produz. Poderiam vender batatas, mas vendem ações. A grande diferença é que uma batata se come; enquanto ações são pura abstração. Como dito por um dos personagens, trata-se de gente invisível que vende um produto invisível. Segundo a opinião do megainvestidor vivido por Jay Duplass (de Transparent) na nova temporada, o único vendedor famoso é Willy Loman.

A crítica da série é a mesma empreendida pela The Office original, porém, trocando a sátira pela crueldade. Não há espaço para risos e as tragédias (pessoais e profissionais) vão se acumulando. No ambiente de trabalho, alternam-se constrangimento, revolta e depressão e, para aguentar o tranco, drogas, sexo e alienação são os companheiros constantes fora do expediente. Neste contexto, a happy hour é sempre mera ilusão.

Trata-se de uma equação simples: um trabalho inócuo com chefes patéticos e abusivos e um mundo determinado pelas aparências. O companheirismo e qualquer sinal de boas práticas vão se tornando cada vez mais relativos à medida que passam os dias – ou episódios, neste caso. Com esta fórmula em mãos, os resultados não podem ser dos melhores.

O risco na areia que determina o limite de tudo é a ética. Mas o que vale mais? Desafiar a “cultura da firma” ou manter o emprego? Jogar o colega aos leões para salvar o pescoço ou se agarrar a um mínimo de justiça e integridade? Aliás, há preço para esta última?

Utilizando de maneira inteligente o noticiário econômico como pano de fundo (governo Trump, Brexit), a série dá aos bois o único nome que os bois podem ter. Enquanto bolsas sobem e descem e euro e dólar valorizam e desvalorizam, a crise ética contemporânea é desnudada. Esqueça as teorias que classificam o capitalismo como tardio, financeiro ou selvagem – todas vãs tentativas de camuflar sua verdadeira natureza.

Em Industry, os eufemismos passam ao largo e o neoliberalismo surge diante de nossos olhos com toda a sua exuberância e perversidade, afetando nossas vidas e, muitas vezes, revelando o que temos de pior. No final, como bem capturado pela série, o capitalismo segue o que sempre foi: cruel e letal.

INDUSTRY – segunda temporada em cartaz na HBO Max

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