A boiada passa por cima dos agricultores

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Maior frigorífico do estado do Pernambuco expande-se para zona onde cerca de 1,5 mil famílias agricultoras lutam pela terra, após saída da cana. Expansão da Masterboi em busca de pastos impulsiona invasões e ameaças de morte por patrulhas armadas

O novo frigorífico da Masterboi foi inaugurado com festa no último dia 15 de agosto em Canhotinho, a 200 km de Recife (PE). Diante de convidados ilustres, como o governador Paulo Câmara, o presidente da empresa, Nelson Bezerra, disse que o empreendimento “é a realização de um sonho”. A planta é a maior do Nordeste e tem capacidade de abater 700 cabeças de gado por dia.

Mas a menos de 60 km dali, agricultores familiares da região da Mata Sul pernambucana (no sudeste do estado) passaram a viver um pesadelo depois da chegada da pecuária de corte, que está ganhando a disputa por seus territórios e gerando violência. A situação, segundo quem acompanha os conflitos de perto, se agravou com a instalação da Masterboi.

A expansão da pecuária vem ameaçando aproximadamente 1.200 famílias, que vivem e trabalham em engenhos nos municípios de Jaqueira (no entorno da antiga usina de açúcar Frei Caneca) e de Maraial.

Aproximadamente 1200 famílias de agricultores estão ameaçadas de despejo na região da Mata Sul, que fica no sudeste do estado de Pernambuco (Foto: Acervo CPT NE2)

“A Mata Sul está virando [mudando] por conta da implantação do frigorífico aqui em Canhotinho”, resume o veterinário Paulo Govêa, que presta assessoria técnica na área de reprodução animal na região.

A região foi o centro da economia da cana-de-açúcar em Pernambuco, mas nas últimas décadas, a queda da produção, a competitividade de outros estados e a dificuldade em modernizar as indústrias mudou radicalmente o cenário. Afogadas em dívidas fiscais e trabalhistas, muitas usinas fecharam: das 42 que estavam em atividade nos anos 1980, restaram apenas 13.

Os antigos trabalhadores que antes se dividiam entre as lavouras de cana e o processamento do açúcar acabaram se estabelecendo nas áreas que ficaram ociosas com a queda da produção. O terreno fértil permitiu que consolidasse uma produção de frutas e legumes que passaram a abastecer a região. Mas nunca tiveram a posse formal da terra.

Agora, as empresas que criam gado para o abate estão comprando essas áreas e querem despejar as famílias, que registram na polícia ameaças, invasão de casas e destruição de roças.

“Sabemos que a tendência é botar boi nas terras, mas estão passando por cima dos pequenos agricultores. E vamos pra onde? Pedir esmola e passar fome na cidade?”, questiona Severino Amaro, agricultor que vive no Engenho Batateiras, em Maraial, a 60 km do frigorífico da Masterboi.

Plantações de banana e outros alimentos foram destruídas por tratores: ‘Eles foram pra cima da gente’, diz o agricultor Antônio Cícero Custódio (Crédito: Acervo CPT NE2)

O medo da fome e de perder o teto é grande, e o clima que se instaurou na região já produziu inclusive vítimas fatais. Em Barreiros, um menino de 9 anos foi assassinado dentro de casa, em fevereiro. Ele era filho de uma liderança do engenho Roncadorzinho, que há anos luta pela regularização de suas terras. Embora neste engenho a pecuária ainda não tenha chegado, Geovani Leão, coordenador regional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), tem certeza que os casos estão conectados: “A violência foi se espalhando para as outras comunidades”, lamenta.

Moradores e defensores de direitos humanos que trabalham na área afirmam que a Masterboi também tem responsabilidade sobre a situação. “A instalação do frigorífico só aconteceu porque há garantia de que haverá terra para criar gado, e as fazendas estão se expandindo porque tem um frigorífico para comprar”, explica Bruno Ribeiro, assessor jurídico da CPT e da da Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras do Estado de Pernambuco (Fetape). Para o advogado, a Masterboi deveria ter uma “posição empresarial firme e não alimentar a cadeia de violência”. “Se o grupo dissesse que não vai negociar boi que venha de áreas de lavagem de terras [negociação de terras desvalorizadas para a pecuária], expulsão de trabalhadores, e violação de direitos, certamente essa violência acabaria”.

A Repórter Brasil procurou a Masterboi, que disse já ter iniciado o cadastramento dos fornecedores da nova planta, mas não detalhou quem são. Questionada se vai evitar comprar gado de áreas em conflito, respondeu que “agradece a oportunidade, mas, neste momento, não temos muito em que contribuir, porque a unidade de Canhotinho ainda está em fase muito inicial de suas operações”. (Leia na íntegra)

Imobiliária muda de ramo

Quando uma empresa imobiliária arrendou terras da antiga Usina Frei Caneca, em Jaqueira, em 2018, a possibilidade de instalação de um frigorífico na região não passava de um diz-que-me-diz. Ainda assim, a Sociedade Negócios Imobiliários S.A., que oficialmente fazia apenas transações com imóveis, deixou umas cabeças de gado pastando em sua nova área. Mas no final de 2019, dez dias antes que se tornasse público um compromisso entre a Masterboi e o governo de Pernambuco para a instalação da planta de Canhotinho, a imobiliária alterou seu nome para Agropecuária Mata Sul e registrou uma filial para criação de gado.

Os moradores do entorno ficaram apreensivos.

Longe de ser uma área de pastagens, o município de Jaqueira, onde a empresa se instalou, é o lar e o sustento de famílias que se dedicam à agricultura depois que a Usina Frei Caneca fechou. A avó de Antônio Cícero Custódio, do Engenho Barro Branco, trabalhou no processamento de cana, assim como seus pais e tios, e o próprio Antônio, que hoje planta em seu sítio alimentos como macaxeira, feijão, milho e banana.

“De início, era imobiliária, mas com a mudança [para pecuária], o conflito aumentou, e eles foram pra cima da gente”, diz.

A empresa destruiu cercas e soltou gado nas lavouras. Um drone, avistado sobrevoando um dos engenhos também foi obra atribuída à Agropecuária Mata Sul. A violência escalou.

“Sofremos atentados com homens armados, ameaças de morte, investidas com cachorros. À noite, passava gente de moto, se estivesse na calçada tinha que entrar em casa: ‘entra ou morre’”, conta José Adriano, do Engenho Fervedouro. 

Apesar de as agressões estarem registradas em boletins de ocorrência, a Agropecuária Mata Sul diz que “desconhece tais ataques, inclusive a veracidade dos mesmos, sendo a própria empresa e seus funcionários vítimas de agressões”. “A continuidade das invasões e agressões contra a empresa terminará por impedir suas atividades, empobrecendo a região”, completa. (Leia a nota na íntegra)

Após queda da produção de cana-de-açúcar, famílias passaram a se dedicar à agricultura familiar e escoar a produção nas feitas municipais da região (Foto: Acervo Engenho Barro Branco)

Mas o próprio governo do Estado reconhece o problema. Tanto que instalou câmeras de segurança nas comunidades. Após a CPT apresentar uma lista com mais de 20 pessoas que estariam marcadas para morrer, três desses nomes foram incluídos no Programa Estadual de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos.

Terror se espalha

Na vizinha Maraial, Severino Amaro, “nascido e criado” no engenho Batateiras, conta que seu pai ouviu do antigo dono das terras que era seu desejo que os trabalhadores permanecessem no local após o fim das atividades da usina. “Ele disse: ‘quero que vocês fiquem nas terras, cada um no seu sítio para fazer roça. Daqui ninguém vai mexer com vocês’”, conta Amaro.

A promessa de paz durou até julho de 2020, quando a empresa IC Empreendimentos Imobiliários Ltda comprou os 960 hectares do Engenho Batateiras. Depois disso, os moradores testemunharam tratores passando por cima de suas lavouras e jogando veneno para impedir a regeneração. Também denunciaram tentativas de intimidação e a instalação de porteiras que impedem a circulação das pessoas. “Passou uma cerca no engenho todo e soltou gado nas nossas terras para destruir as nascentes e comer as lavouras”, relata o agricultor. “Hoje estamos sendo expulsos, como se tivéssemos invadido a nossa própria terra.

No Engenho Batateiras, porteiras trancadas impedem a circulação dos agricultores familiares: ‘ como se tivéssemos invadido a nossa própria terra’, lamenta Severino Amaro (Crédito: Acervo CPT NE2)

A violência não dá trégua nem nas datas festivas. Em 2020, na véspera de Natal, os agricultores se reuniram em um sítio, quando ouviram gritos do lado de fora. Era Amaro, acompanhado de outro agricultor, pedindo ajuda após serem surpreendidos por pessoas armadas. “Nos chamaram de bandido, mandaram a gente se ajoelhar, e começaram a ‘meter o cacete’ e apontar a arma na nossa cabeça”, conta. Um morador que filmou o ataque foi ameaçado com um tiro na perna, caso não entregasse o celular. 

O novo dono do local, a quem os moradores atribuem o mando dos episódios, é o empresário alagoano Walmer Almeida da Silva, conhecido como “maracujá de ouro” – apelido que ganhou na infância, quando vendia maracujá na feira. Segundo os agricultores, é ele quem vai nas comunidades com seguranças privados e intimida a população. Walmer já foi acusado por homicídio e preso sob acusação de desviar R$ 300 milhões em impostos. No papel, a empresa está no nome do filho de Walmer, um estudante de engenharia em Alagoas.

Foi após o episódio do Natal que o Estado instalou câmeras na casa de Vanessa de Oliveira – ela teve também sua casa invadida por funcionários da empresa. “Walmer mandou um recado dizendo que a partir daquele momento quem tangesse (espantasse) o gado a ordem era matar, seja menino, mulher ou cachorro. Não temos segurança de trabalhar no nosso sítio e saber que vamos permanecer vivos”.

A Repórter Brasil entrou em contato com Walmer Silva e com a IC Consultoria, por email e telefone, por meio de suas empresas e advogada, mas não teve retorno. O espaço permanece aberto para sua manifestação. 

Origem das terras é incerta

Com medo de novos ataques, os agricultores reivindicam que o Instituto de Terras do Estado de Pernambuco, o Iterpe, faça o levantamento fundiário da área do engenho Batateiras. Há suspeita de que há terras públicas, inclusive dentro da propriedade onde estava instalada a lavoura de cana, que poderiam ser usadas para regularizar sua situação.

Quando o antigo dono fez a doação oral das terras para a comunidade, ele mencionou a existência de “terras do governo” na área. A certidão de compra do Engenho Batateiras cita “terras públicas” nos limites da propriedade.

Já no caso da centenária Frei Caneca, em Jaqueira, a esperança dos agricultores familiares é que o Estado cubre as dívidas públicas do empreendimento – e reverta o valor para promover a regularização fundiária das comunidades. A usina nunca declarou formalmente falência, apesar de não produzir mais, e por isso hoje se afunda em dívidas: deve mais de R$ 173 milhões para o estado de Pernambuco e União. 

“As comunidades exercem efetivamente a posse da terra”, avalia o assessor jurídico da CPT, Bruno Ribeiro.

Agricultores familiares da Mata Sul exigem que governo cubra dívidas das usinas de cana-de-açúcar e destine terras para a agricultura familiar (Foto: Acervo CPT NE2)

Procurado pela Repórter Brasil, o Iterpe respondeu que já realizou ações de campo de cadastro e georreferenciamento da área e notificou os proprietários. O governo do estado complementou, informando que os engenhos Batateiras, Barro Branco, Laranjeiras, Fervedouro, Várzea Velha são “áreas prioritárias passíveis de desapropriação” (Leia na íntegra)

A transformação de áreas de agricultura familiar em pasto para boi reproduz, em 2022, um cenário que começou no tempo das capitanias hereditárias, com a produção (naquele tempo, de cana) e as terras concentradas nas mãos de poucos. 

“A concentração de terras continua e o Estado não tem condições de desapropriar. Está havendo uma rápida substituição da cana pelo ‘pé de boi’, é uma transição conservadora e atrasada”, avalia Jaime Amorim, da Direção Nacional do MST em Pernambuco.

Governo incentiva pecuária

Enquanto trabalha – a passos lentos, na visão dos agricultores – para resolver os conflitos fundiários na região e evitar violência e despejos, o governo do Estado também fomenta o avanço da pecuária de corte ligada à planta da Masterboi em Canhotinho. A instalação do frigorífico foi incluída nos programas de incentivo fiscal e conta com desconto de 90% sobre o ICMS devido a cada mês.

O governo de Paulo Câmara também anunciou investimento de R$ 20 milhões – parte repassada para a construção de um acesso viário à planta, no valor de R$ 4,2 milhões.

A prefeitura de Canhotinho se somou aos esforços, perfurando “mais de dez poços artesianos para dar condições para Masterboi se instalar” na cidade, segundo o então prefeito, Felipe Porto. O investimento municipal teria chegado aos R$ 3 milhões na implantação do frigorífico.

Felipe é integrante da família Porto, à qual o presidente da empresa, Nelson Bezerra, agradeceu na inauguração da unidade: “Determinação que fez toda diferença”.

Implementação do frigorífico em Canhotinho teve apoio da família Porto, que tem braços na prefeitura, assembleia legislativa e Tribunal de Contas do Estado (Foto: Reprodução/Facebook)

Álvaro Porto, deputado estadual em busca da reeleição que já foi prefeito de Canhotinho duas vezes, fez reuniões com pecuaristasempresários foi até Brasília encontrar com o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira “buscando o fortalecimento da pecuária em todo o estado de Pernambuco, visando a chegada da Masterboi”. Foi sua esposa, Sandra Paes, a atual prefeita de Canhotinho, que concedeu o título de cidadão de Canhotinho ao dono do frigorífico.

A costura da instalação da planta de abates na cidade teve participação até de um conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, também parte da família. Segundo suas próprias palavras, Carlos Porto “reuniu os poderes municipais com autoridades do Governo Estadual e diretores Masterboi”. (Leia na íntegra)

A Repórter Brasil entrou em contato com o deputado Álvaro Porto, Felipe Porto e a prefeitura de Canhotinho mas não houve resposta até o fechamento da reportagem.

Cansados de esperar e temendo mais ataques, os agricultores familiares da Mata Sul não escondem a revolta com os incentivos do governo à Masterboi. “Ao invés de nos socorrer, a Justiça e o governo apoiam empresários que estão criando milhares de bois para abater no frigorífico”, desabafa Severino Amaro, do Engenho Batateiras.

Originalmente no Reporter Brasil

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