A espiritualidade em sua dimensão antropológica

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.

Somos constituídos pela articulação das nossas dimensões biológica, psicológica e espiritual, no social. Mas como podemos definir cada uma dessas dimensões?

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África,
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.

Se eu pudesse crer em um manipanso qualquer –
Júpiter, Jeová, a Humanidade –
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Poesias de Álvaro de Campos, Fernando Pessoa

Abro esse texto com um trecho de Essa velha angústia, poesia de Fernando Pessoa e um convite à reflexão: o que te torna um ser humano? Somos nosso corpo e tudo que o constitui? Somos nossas emoções e a possibilidade de sentir? Somos nosso cérebro e nossa capacidade de pensar? Quem é você? Quem somos nós? O que te diferencia como pessoa? O que nos define como espécie?

Essa capacidade de ter uma experiência reflexiva sobre nossa própria vida, revela a própria estrutura humana. Somos constituídos pela articulação das nossas dimensões biológica, psicológica e espiritual, no social. Mas como podemos definir cada uma dessas dimensões?

O conhecimento do mundo e de si mesmo principia-se através da nossa corporeidade. Nosso corpo constitui-se como limite e abertura para o mundo, e espaço onde emerge nossa percepção de afeto. Através dele apreendemos a vida que acontece em e fora de nós. Porém, o corpo humano não é estático, ele é animado por uma força vital de onde emerge a nossa pessoalidade, que seriam as nossas dimensões psíquica e espiritual (Fenomenologia e ciências humanas: psicologia, história e religião. Ângela Ales Bello, 2004).

A dimensão psíquica é a percepção humana que interioriza o mundo exterior: emoções, sentimentos, instintos. A psique dinamiza-se através da maneira como a realidade ressoa dentro de cada pessoa – a subjetivação do real – ao tornar nosso aquilo que está fora. Essa ressonância é registrada através da nossa afetividade.

Por fim, a capacidade de refletir e analisar a realidade faz parte da nossa dimensão espiritual. Ela permite-nos compreender as emoções e discernir sobre qual atitude tomar em relação a elas. A nossa psique funciona como um impulso, uma força mobilizadora, e a nossa espiritualidade seria responsável por direcionar essa força de acordo com nossos valores.

Sendo assim, a dimensão espiritual é a que nos permite uma percepção de totalidade do nosso ser. Permitindo-nos, ainda, nas palavras de Leonardo Boff, “colocar questões fundamentais e captar a profundidade do mundo, de si mesmo e de cada coisa” (Crise: oportunidade de crescimento. Leonardo Boff, 2002, p. 56).

Entender essa estrutura multidimensional e o conceito de espiritualidade como uma condição fundante do ser humano, é fundamental para pensar a relação entre saúde e espiritualidade. Ao mesmo tempo que não existe nada que aconteça ao nosso corpo, que não interfira nas nossas emoções e pensamentos, também a forma como pensamos e sentimos, impactam direta e indiretamente nosso organismo. Sendo assim, torna-se imprescindível compreender melhor qual o papel da dimensão espiritual na articulação de todas as dimensões que nos constituem.

Essa estrutura transcendental e necessidade de dar sentido ao mundo e a tudo que nos acontece é o que abre espaço para o ser humano criar religiões, bem como viver uma experiência religiosa. Porém, a espiritualidade, como caminho de interioridade e aprofundamento, não precisa coincidir, necessariamente, com religiosidade e busca por sentido último. Mas ela permite, tanto crentes quanto não crentes, uma possibilidade de desenvolvimento da sua própria humanidade.

Possibilita ainda que pessoas que pertencem a uma religião possam aprofundar e até mesmo questionar a própria fé, compreender suas tradições, dogmas e inclusive, questioná-los. A espiritualidade é a dimensão que nos impede de nos deixar ser guiados apenas por nossos instintos e preconceitos, abrindo a possibilidade para questionar toda a nossa existência, inclusive o que sentimos e desejamos.

Sendo assim, retomando o poema citado no início do texto, pensar a saúde de forma integral, é levar em conta os valores que constituem cada sujeito e saber analisar a forma como eles foram articulados na trama daquela vida singular. Afinal, “o que é tudo senão o que pensamos de tudo?”. Portanto, precisamos entender que a forma como cada pessoa internaliza os dogmas e orientações da sua religião e cultura e como estas podem influenciar no seu estado de saúde, tanto de forma positiva quanto negativa.

De acordo com Viktor Frankl (A presença ignorada de Deus), a dimensão espiritual, o cerne antropológico do ser humano, sintetiza-se em um binômio: ser consciente e ser responsável, uma vez que o homem é sempre em intencionalidade no mundo. Tudo que é superficial e ordinário pode ser simplesmente escolhido, sem maiores consequências para a nossa vida. Porém, tudo que é mais profundo, como um processo de decisão, exige uma elaboração, envolve a iluminação de um projeto de vida, toca na nossa liberdade para nos fazermos continuamente.

Ser, no sentido existencial do termo, só é possível pois carregamos em nós, uma dimensão espiritual. Ser, com todas as angústias e possibilidades que essa experiência carrega, exige de cada um de nós que assumamos a responsabilidade pela nossa existência e pelo mundo que criamos, à partir do mundo que nos foi dado.

por Camila C. Marçal

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