WikiFavelas: Exu e resistências no Sambódromo

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Dicionário Marielle Franco expõe o sincretismo e as disputas políticas no Carnaval. Diante da intolerância religiosa, a passarela desafia o binarismo ocidental e intensifica a crítica social sob a bênção do orixá da comunicação

Fevereiro é um mês intenso para aqueles e aquelas que curtem carnaval. Uma das maiores festas populares do mundo, o carnaval é uma expressão cultural diversa e vibrante. Um breve olhar aos enredos de 2023 das escolas de samba do Grupo Especial no Rio de Janeiro revela uma dimensão dessa festa: homenagens aos que vieram antes (Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho…), celebrações às religiões de matrizes africanas (com homenagens aos santos e orixás), questões de gênero e questões sociais em geral. A receita não é nova: a história do carnaval é uma história de lutas e resistência. Cada vez mais tem se fortalecido como crítica social e política. No carnaval de 2022 no Sambódromo do Anhembi, em São Paulo, a Escola Rosa de Ouro encenou a transformação de Bolsonaro em jacaré, após tomar a vacina contra a covid-19. Já a Gaviões da Fiel apresentou um samba com uma crítica política direta ao governo, cantando:

Meu lugar de fala, a voz destemida
Cabeça erguida por nosso direitos
Quando o fascismo do asfalto
É opressor à militância por respeito.

Ao se perguntar como é possível um carnaval igualitário numa sociedade hierarquizada e autoritária, Roberto DaMatta encontra no princípio da inversão a explicação de como o carnaval suspende temporariamente as classificações e marcações sociais existentes, subvertendo as linhas de poder, em uma experiência controlada que irmana os fracos com seus poderes mágicos e místicos. Fugiram, assim, do poder fundado na força física e no monopólio da violência.

O resgate da ancestralidade africana e as denúncias políticas têm ganhado cada vez maior força e espaço nos enredos que as escolas de samba levam para a avenida, ao lado da ocupação dos espaços comuns por blocos que ressignificam o sentido público do espaço urbano. Tais tendências parecem escapar de uma subversão temporariamente consentida para expressar uma continuidade com as lutas sociais e urbanas, retroalimentando movimentos sociais e coletivos de favelas e periferias. “Na luta é que a gente se encontra” foi refrão cantando em 2019 pelo samba da Mangueira, usado na cobrança do esclarecimento sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco no ano anterior.

Nas ruas, temos centenas de milhares de blocos espalhados por todo o país, ajudando a fomentar novas formas de apropriação da espacialidade urbana. É o caso do Carnaval de Rua no Complexo de Favelas da Maré, que já teve suas ruas, becos e vielas ocupados por blocos como Tamanqueiros, Império de Bonsucesso, Vila do João, Unidos da Baixa do Sapateiro, Unidos do Caetés, Diamante Negro, Corações Unidos de Bonsucesso, Mataram Meu Gato. Na Rocinha, uma das maiores favelas do Brasil, vimos nascer no começo dos anos 2000 um bloco chamado “Ai que vergonha”, que no primeiro desfile contou com cerca de 300 pessoas e hoje arrasta mais de 100 mil pessoas pelas ruas. Segundo organizadores do bloco, “o movimento [que funda o bloco] se propõe a ser um grito de liberdade, passando mensagens importantes durante o carnaval. Discriminação e preconceito foi seu primeiro enredo, mas tratam também o descaso com a água, o aquecimento global, a importância de cuidarmos da história e local e homenagear os baluartes da Rocinha.”

Já nas avenidas, os gigantes do carnaval brasileiro, como Nelson Sargento, são símbolos de um Brasil que insiste em não se curvar para aqueles que tentam destruir o direito à alegria, à memória, à vida digna. Nelson, um jovem negro na década de 1930, que ajudava sua mãe lavadeira no trabalho, conheceu o samba aos 10 anos e encontrou ali uma rota de fuga para o destino que as histórias únicas constroem para tantos outros jovens negros no Brasil. Tornou-se compositor, cantor, pesquisador da música popular brasileira, artista plástico, ator e escritor.

Leci Brandão, cantora e compositora, a primeira mulher a compor uma ala de compositores, desde a década de 70 se dedica à cultura, sendo hoje deputada Estadual por São Paulo. Segundo a Wikifavelas, Leci se dedica aos debates no campo da igualdade racial, respeito às religiões de matriz africana e, claro, à cultura brasileira. Cabe destacar que ela é a segunda mulher negra eleita deputada estadual em São Paulo em toda a história da Assembleia Legislativa.

Em outra geração, Evelyn Bastos – Rainha de Bateria da Estação Primeira de Mangueira há mais de 10 anos – também nos ajuda a entender a potência do samba para a apresentação de outros futuros às mulheres e meninas de favelas. A rainha é nascida e criada no Morro da Mangueira e sua mãe, Valéria Bastos, é costureira e foi também rainha de bateria da escola nos anos 80. Seu pai é pintor de carros. Pelo sistema de cotas, ingressou em uma universidade pública e formou-se em educação física e hoje está à frente de projetos sociais na favela, especialmente dedicada a formar mais mulheres jovens para o trabalho no samba, na formação de jovens passistas.

Os três casos nos ajudam a constituir um retrato de como as escolas de samba contribuem com a disputa de um sentido de Brasil que seja mais polifônico, mais consciente de que jovens negros favelados e pobres são sujeitos de direito e podem ter um horizonte de futuro que não seja tão marcado pelas violações de direitos.

Mas nem tudo é festa. Na verdade, a festa depende de um trabalho – muitas vezes invisibilizado – realizado por todo o ano, que precisa ser atendido por políticas públicas para ser efetivado. E, de acordo com as disputas de cada período, o carnaval pode ser sufocado de forma a inviabilizar não apenas a festa popular, mas o sustento e a subsistência de milhares de pessoas. É o caso retratado no documentário “Um carnaval entre a alegria e a desilusão”, onde observamos como diante do desmonte da cultura, mobilizado pelo racismo e intolerância religiosa, a escola de samba Alegria da Zona Sul (RJ) enfrenta grandes dificuldades.

Nesse sentido, a análise do carnaval também nos faz pensar sobre [a falta de] liberdade religiosa no Brasil. É nesse espaço que diferentes grupos religiosos – especialmente aqueles vinculados às religiões de matrizes africanas – ocupam as ruas e avenidas com grande mobilização. É o caso do Afoxé Raízes Africana. Segundo o grupo, “o Afoxé é uma manifestação popular muito comum durante o carnaval e também é conhecido como o candomblé das ruas. É um cortejo tocado pelos terreiros com muita música, um ponto de encontro entre a população das religiões de matrizes africanas”. São nesses espaços que observamos denúncias e reivindicações. É o espírito que transparece no Samba Enredo de 2020 da Grande Rio, que canta na Sapucaí “Eu respeito seu amém / Você respeita meu axé”, num importante momento de culto ao Candomblé.

Aliás, falando na Grande Rio, não podemos esquecer que Exu venceu o último carnaval. A história do orixá do movimento e da comunicação foi contada na avenida em uma homenagem feita pela Grande Rio no sambódromo depois de um ano sem desfile de escolas de samba, devido à pandemia da covid-19. Com essa vitória, Exu ganhou destaque no debate público. Muitos jornais, revistas, programas televisivos e sites passaram a falar sobre essa complexa entidade que, com frequência, é temida e pouco compreendida, ou abordada numa perspectiva racista que criminaliza as experiências que existem fora da racionalidade cristã ocidental.

Em um verbete do Dicionário de Favelas Marielle Franco sobre racismo religioso, Carolina Rocha explica a dificuldade que muitos possuem de compreender Exu, lembrando que as sociedades de matriz africana possuem conjuntos de valores e de crenças — uma forma de construção de conhecimento e sentido de mundo que não opera em uma lógica binária e dualista, tal como a lógica ocidental. Compreender Exu torna-se difícil nas sociedades ocidentais porque nelas o pensamento baseia-se, com frequência, em binarismos e dicotomias como bem e mal, Deus e o Diabo, certo e errado, homem e mulher, público e privado, sagrado e profano, etc.

O carnaval é um espaço de celebração e resistência que tenta romper com esses binarismos. Podemos dizer que as escolas de samba são contadoras de história das mais potentes. Em tempo de graves ataques à liberdade religiosa, o desfile vencedor discutir Exu é um ato de resistência, rebeldia e afirmação de vida. Faustino Teixeira, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, discute a questão em seu artigo “A vitória do sincretismo: o desfile da Grande Rio no carnaval carioca de 2022”, publicado originalmente no blog do Instituto Humanitas Unisinos – IHU e disponível na íntegra no Dicionário de Favelas Marielle Franco. (Introdução e seleção: Caique AzaelPalloma Menezes e Sônia Fleury, da equipe do Dicionário de Favelas Marielle Franco).

A vitória do sincretismo: o desfile da Grande Rio no carnaval carioca de 2022

A linda vitória da Acadêmicos do Grande Rio é, na verdade, a vitória contra a intolerância religiosa sofrida pelas religiões africanas e de matriz afro-brasileira em nosso país.

Num tempo difícil em que cresce a repressão contra tais tradições, uma vitória assim é motivo de grande alegria: é a vitória do “som Brasil”[1], para expressar uma noção bonita do antropólogo Pierre Sanchis, que sempre celebrou o “toque” do sincretismo e da diversidade brasileira, que continuam fazendo a vibrar uma modulação essencial da cultura brasileira.

Vejo também como um grito que pede respeito, desmistificando uma das figuras tão mal vistas por segmentos da população brasileira e em particular de grandes camadas do mundo evangélico e pentecostal, bem como do catolicismo carismático.

O enredo e o samba da Escola empolgaram a avenida e trouxeram as chaves de Exu para abrirem os corações e mentes dos brasileiros preconceituosos, oferecendo uma possibilidade lírica e festiva para quebrar tabus que reafirmam o passo da exclusão do outro.

O Orixá vem celebrado e convidado a falar de si para a multidão na Marques de Sapucaí. Foi uma vitória dos carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad, que tiveram essa ousadia de apresentar de forma brincalhona e lúdica essa figura do panteão afro. Em passagem do samba enredo celebramos:

Exu Caveira, Sete Saias, Catacumba
É no toque da macumba, saravá, Alafiá
Seu Zé, malandro da encruzilhada
Padilha da saia rodada, ê Mojubá
Sou Capa Preta, Tiriri
Sou Tranca Rua, amei o Sol
Amei a Lua, Marabô, Alafiá
Eu sou do carteado e da quebrada
Sou do fogo e gargalhada, ê Mojubá.

Temos por exemplo no Candomblé o maravilhoso rito onde os participantes cedem seu corpo para a dança dos deuses, como mostrou tão bem Roger Bastide:

“Os gestos, porém, adquirem maior beleza, os passos de dança alcançam estranha poesia. Não são mais costureirinhas, cozinheiras, lavadeiras que rodopiam ao som dos tambores nas noites baianas; eis Omolu recoberto de palha, Xangô vestido de vermelho e branco, Iemanjá penteando seus cabelos de algas. Os rostos metamorfosearam-se em máscaras, perderam as rugas do trabalho cotidiano, desaparecidos os estigmas desta vida de todos os dias, feita de preocupações e de miséria; Ogum guerreiro brilha no fogo da cólera, Oxum é toda feita de volúpia carnal. Por um momento, confundiram-se África e Brasil; aboliu-se o oceano, apagou-se o tempo da escravidão”[2].

Pierre Verger lembra em texto semelhante que naquele momento do ritual o participante se transforma em rei e rainha, superando ritualmente os embates do cotidiano doloroso. Esse grande estudioso e iniciado no candomblé sublinha:

“O Candomblé é para mim muito interessante por ser uma religião de exaltação à personalidade das pessoas. Onde se pode ser verdadeiramente como se é, e não o que a sociedade pretende que o cidadão seja. Para pessoas que têm algo a expressar através do inconsciente, o transe é a possibilidade do inconsciente se mostrar”[3].

Nos trabalhos preciosos de Reginaldo Prandi, podemos captar com clareza esse manancial das religiões de matriz afro-brasileira, quando o “eu” se torna sagrado e poderoso, podendo romper grilhões de opressão e revelar segredos desconhecidos[4]. O orixá se desdobra em orixá da pessoa.

Exu exerce um papel fundamental para abrir chaves, abrir trabalhos. Como indica Reginaldo Prandi, os filhos de Exu são gente que traduzem a “ambiguidade” que marca o povo brasileiro: eles são agitados, irônicos, manhosos, como os malandros brasileiros, no seu sentido mais nobre[5].

Exu é alguém que se solta, de fala fácil, com a sexualidade à flor da pele. A rua é o seu lugar predileto, a avenida é o seu lugar predileto. Os exus e as pomba giras são ágeis, sedutores: adoram o espaço aberto e a cachaça. Não se caracterizam pela maldade, como certa visão preconceituosa buscou apresentar na opinião pública. Exu é gente matreira, ardilosa, que entende bem de artimanhas, mas não guarda rancor. É gente brincalhona, pautada pela alegria, e amante das comidas e bebidas.

A vitória de Exu na avenida serviu um pouco para “balançar” nossa casa sofrida e trazer festa para um povo entristecido e abafado. Ele vem sempre para “bagunçar a casa”, quebrar a seriedade bem comportada e apontar dimensões esquecidas que habitam em cada um, e que foram profundamente reprimidas nesse tempo da epidemia, mas tempo que é também do arbítrio político, do fechamento e da “celebração” do fascismo. Viva Exu, viva a raiz popular que ousa mostrar o seu rosto festivo e disruptor.

A história da discriminação religiosa no estado do Rio de Janeiro foi objeto de um estudo cuidadoso de Denise Pini Rosalem da Fonseca e Sonia Maria Giacomini[6]. Em seu artigo sobre intolerância religiosa, Sônia divulga dados que já são mais antigos, mas que impressionam: “Das 840 casas que responderam à questão específica sobre discriminação, mais da metade informou ter sido alvo de alguma ação qualificada como ‘discriminação ou agressão por motivo religioso’”[7].

Um dos grandes estudiosos brasileiro das religiões afro é Reginaldo Prandi. Tive a alegria de contar com um artigo seu no livro que organizei junto com Renata Menezes sobre as religiões e o Censo de 2010[8]. Com base nos dados do Censo de 2010, Prandi indicou que em 2010 as religiões afro-brasileiras contavam com cerca de 0,3% de adeptos declarados. É verdade que nem sempre os dados apresentados são representativos pois escamoteiam a dupla ou tripla pertença religiosa que ocorre no Brasil. Mesmo assim, a declaração de crença é baixa. Os dados do Censo mostram ainda que na ocasião a Umbanda estava em decréscimo, enquanto o Candomblé apresentou leve crescimento. O Censo mostrou que a presença destas tradições no país “reduziu-se a um patamar estagnado abaixo do nível do crescimento vegetativo”[9].

Em recente artigo no jornal O Globo, de 22/04/2022[10], Reginaldo Prandi comenta a presença das tradições afro-brasileiras no carnaval carioca em 2022. Dizia que “os orixás estão em peso na avenida”. De fato, isto ocorreu, para o maravilhamento das pessoas que assistiram o espetáculo, seja ao vivo ou pela televisão. Só no Rio, comenta Prandi, seis das doze escolas de samba do grupo especial honraram a cultura afro-brasileira.

Buscando interpretar esta popularidade, Prandi sublinha que “à medida que aumenta a intolerância religiosa, a fé afro-brasileira é acolhida no campo cultural”[11]. Estou plenamente de acordo com o pesquisador e amigo paulista. O carnaval brasileiro sempre esteve ligado ao universo afro-brasileiro, com suas cores, energia e religiosidade empolgantes. A vitória exemplar da Grande Rio proporcionou visibilidade única ao que vem considerado o núcleo basilar das religiões de matriz afro-brasileira: os Exus.

No livro Mitologia dos Orixás[12], Reginaldo Prandi assinala que Exu é o orixá que sempre está presente, e o culto dos demais orixás sempre “depende de seu papel de mensageiro”. Sem o exu nem os orixás ou os humanos podem se comunicar. É a sua presença que traduz a “porta de entrada” dos rituais, e sem a sua participação não pode acontecer nem movimento, reprodução ou qualquer outra dinâmica de presença criativa nos rituais[13].

Infelizmente, guardamos uma imagem negativa de Exu, que é resíduo da identificação feita pelos europeus entre exu e o diabo. Nada mais grosseiro ou falso. Exu é mensageiro, esse é o melhor modo de identifica-lo[14]. É o mensageiro que das terras africanas e povos iorubas, perambulava pelas aldeias em busca de solução para os problemas mais aflitivos dos seres humanos. É o mensageiro e alvissareiro que traz a boa notícia em favor da manutenção da saúde e do bem-viver, sem desconhecer ou abordar igualmente as desventuras que marcam a trajetória dos humanos. (por )

VOZ DO PARÁ: Essencial todo dia!

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