Cinema: O fio da navalha das redes sociais

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Arthur Rambo é um vibrante retrato da era digital: jovem franco-argelino, promessa literária, desce ao inferno após seus tuítes abjetos virem a público. A praga, filme de José Mojica perdido por décadas, é exibido na reabertura da Cinemateca

Difícil imaginar um filme mais vibrante e atual que o francês Arthur Rambo – Ódio nas redes, de Laurent Cantet, que estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, 12 de maio. Narram-se ali as 48 horas em que Karin D. (Rabah Nait Oufella), jovem parisiense de origem argelina, passa de grande revelação literária a persona non grata nos círculos intelectuais e políticos, uma espécie de pária execrado à direita e à esquerda.

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A queda brusca é motivada pela revelação de que Karin é também Arthur Rambo, pseudônimo com que tuitou durante anos nas redes mensagens virulentas e abjetas contra judeus, homossexuais, mulheres e outros alvos, assumindo ocasionalmente a defesa do terrorismo islâmico.

Fluxo contínuo

Cantet, diretor do excelente Entre os muros da escola (2008), ganhador da Palma de Ouro em Cannes, inspirou-se desta vez na história real de Mehdi Mekla, escritor promissor caído em desgraça por motivo semelhante. O maior acerto de sua abordagem consistiu em condensar em dois dias, num fluxo contínuo, o processo de apogeu e queda, acentuando a sensação de velocidade e vertigem destes tempos pautados pela comunicação digital.

A progressão narrativa é de uma objetividade absoluta, sem digressões nem tempos mortos, de modo a prender o espectador na mesma atmosfera de tensão e atordoamento que parece dominar o protagonista. Este permanece o tempo todo em cena, ou seja, tudo é narrado do seu ponto de vista, mas ainda assim nunca sabemos exatamente quem é e o que pensa de verdade Karin D./Arthur Rambo.

Aqui temos o cerne da tragédia: trata-se de um ser dividido, que se apresenta com uma face no mundo literário e na mídia tradicional (TV, rádio, revistas, jornais) e com outra inteiramente diferente na selva da internet. Uma das poucas cenas mais pausadas, logo no começo, mostra a remoção da maquiagem com que Karin acabou de se apresentar numa entrevista televisiva. Uma das maneiras de ver o filme é observar como a elegância refinada da primeira imagem vai se desmontando progressivamente, à medida que o personagem é expelido dos círculos bem pensantes.

O vício da internet

Para o mundo “civilizado”, Karin diz que, a começar pelo pseudônimo (que remete ao poeta Arthur Rimbaud), Arthur Rambo era uma provocação jocosa, uma maneira de suscitar a discussão e a reflexão. Mas no bairro periférico de onde ele provém, habitado por jovens de origem árabe revoltados contra a opressão e a discriminação, seu discurso de ódio já se tornou um código identitário, uma bandeira de luta que empolga até mesmo seu irmão mais novo.

Num momento de fragilidade, Karin admite que sua compulsão a emitir mensagem agressivas no Twitter, iniciada na adolescência, tinha as características de um vício, com a busca cada vez mais frenética por “views”, “likes”, comentários e compartilhamentos. Quanto mais ultrajante a mensagem, maior a repercussão.

A facilidade com que a tela do celular ou do computador aceita qualquer coisa, aliada ao anonimato, leva a uma sensação de onipotência e irresponsabilidade absolutas. A conta vem depois. Numa sequência expressiva, o protagonista anda por um vagão de metrô em que todos estão ligados em seus celulares, e cada aparelho é uma ameaça, como se todo mundo estivesse lendo seus tuítes infames ou a desgraça deles decorrente.

E as mensagens de Rambo são tão repulsivas que os produtores do filme julgaram prudente informar, num letreiro final, que ninguém que participou da produção concorda com elas.

Mas Cantet não trilha o caminho fácil do maniqueísmo, nem tampouco o da identificação com este ou aquele personagem, este ou aquele discurso apaziguador. Os jovens rebeldes da periferia, com sua raiva difusa, têm tanta legitimidade quanto os refinados conselheiros de editoras. Karin é um personagem trágico porque, de certo modo, quer habitar esses dois mundos ao mesmo tempo. No fundo, o que sua trajetória põe a nu são as fraturas culturais, sociais e políticas de nossa época.

A ambiguidade inquietante dessa criatura que se corta feio ao andar no fio da navalha só é possível pela brilhante atuação de Rabah Nait Oufella, revelado aos 16 anos pelo mesmo Laurent Cantet em Entre os muros da escola.

Zé do Caixão na Cinemateca

A data é sexta-feira, 13, mas a notícia é duplamente boa. Depois de um longo tempo fechada, vítima de abandono e hostilidade por parte do governo federal, a Cinemateca Brasileira, em São Paulo, reabre suas portas ao público. E o evento de reabertura será nada menos que a exibição, às 20h, de um média-metragem inédito de José Mojica Marins (1936-2020), A praga, que durante décadas foi dado como desaparecido pelo próprio diretor.

Junto com o filme será apresentado o curta A última praga de Mojica, de Cédric Fanti, Eugenio Puppo, Matheus Sundfeld e Pedro Junqueira, que narra a saga da descoberta e recuperação do filme, rodado em super-8 no longínquo 1980. Em 2008, fuçando nas coisas antigas de Mojica, o produtor e cineasta Eugenio Puppo encontrou as latas em que estava a película do filme inacabado e sem som.

Com a orientação do diretor veterano, e tendo como guia a história em quadrinhos de Rubens Luchetti que serviu de roteiro para o filme, o recuperou-se o material e gravaram-se as falas. Novas cenas foram acrescidas, em especial a narração pelo próprio Mojica, caracterizado como Zé do Caixão.

A praga é uma pequena maravilha. Em seus 50 minutos estão presentes a criatividade selvagem de Mojica e sua profunda intimidade com o fabulário popular. A história é singela: durante um passeio pelo interior, um jovem casal (Silvia Gless e Felipe Von Rhime) se depara com um casebre onde vive uma velha solitária (Wanda Kosmo) com fama de bruxa na região. O rapaz, aspirante a fotógrafo, resolve retratar a mulher, mesmo contra os protestos desta, que então lhe roga uma praga terrível. Cético, ele ri, mas a maldição não tarda a atormentá-lo, começando pelos pesadelos.

Não convém antecipar o teor da praga, apenas observar que há um crescendo de violência e delírio que aproxima o filme ao mesmo tempo do cinema gore norte-americano e das primeiras produções de David Cronenberg. Mas talvez esteja nos pesadelos o maior encanto de A praga, por fazer da própria materialidade da película instrumento de expressão: riscos nos fotogramas, manchas, superexposição, esmaecimento das cores, tudo conflui para a criação de um espaço imagético irreal e perturbador. A contribuição milionária de todos os erros na criação de um cinema único, original – e visceralmente brasileiro.

Em tempo: sábado e domingo a Cinemateca exibirá outros títulos de Mojica, como O despertar da bestaExorcismo negro Encarnação do demônio. Também na sexta-feira, 13, às 23h, A praga A última praga de Mojica serão exibidos em Curitiba, no Cine Passeio. Cabe esperar que logo cheguem aos cinemas de todo o país.

Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles

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