Carvão é um filme perturbador. Entre a crônica e a fábula moral, o olho implacável da câmera revela as hipocrisias de “cidadãos de bem” no interior paulista. E fogo de fragilidades, desejos reprimidos e torpezas não purifica: torna tudo cinzas
Carvão, longa-metragem de estreia de Carolina Markowicz, é um dos filmes mais fortes e perturbadores dos últimos tempos. Seu tema central, se for preciso definir um, é a família tradicional brasileira, retratada quase como um círculo do inferno.
Seu entrecho é enganosamente simples. Num lugarejo perdido no interior paulista, uma família mantém uma pequena carvoaria. Quem mais trabalha é Irene (Maeve Jinkins), que além de tratar dos fornos ainda cozinha para fora e cuida do pai entrevado e do filho pequeno, o rebelde Jean (Jean de Almeida Costa). O marido, Jairo (Rômulo Braga), ajuda pouco. Na maior parte do tempo está ausente, bêbado ou dormindo.
Nesse contexto, o pai de Irene, que passa o dia deitado, em estado vegetativo, é, quase literalmente, um peso morto. Um estorvo. É assim que ele é filmado, em primeiro plano, obstruindo uma parte do quadro, quando uma nova enfermeira do posto de saúde, Juracy (Aline Marta Maia), conversa com Irene e propõe uma solução simples para os problemas da família. Uma “solução final”, para usar uma expressão tristemente célebre.
Anjo da morte
Juracy é uma espécie de anjo da morte, e sua intervenção faz a história se elevar da crônica familiar à fábula moral. Entra em cena, de modo um tanto inverossímil (mas já estamos no campo da fábula), um narcotraficante estrangeiro (o argentino César Bordón), que precisa passar um tempo escondido naquele fim de mundo.
A família se redesenha então, a partir dessa convivência forçada, tentando ao mesmo tempo manter as aparências junto à comunidade (a vizinha bisbilhoteira, o padre, a diretora da escola do filho). Muitas surpresas e revelações virão. Nessa narrativa enxuta, lacunar, tudo ganha significado, dos olhares enviesados ao modo de matar uma galinha, das meias palavras às imagens religiosas (a sagrada família, a última ceia) que aparecem como pano de fundo de momentos de transgressão e violência.
Mencionei acima um círculo do inferno. Este, o do filme, seria o da mentira. Todos os personagens, não apenas os do núcleo familiar, mentem, falseiam, escondem. Com habilidade e sutileza, a diretora Carolina Markowicz pega seus personagens no contrapé, por assim dizer, desvelando sua hipocrisia ao mostrar o que fazem quando ninguém está vendo – só o olho implacável da câmera. “Abandonai toda esperança, vós que entrais” deveria ser o aviso na entrada do vilarejo.
Vêm à tona assim os desejos reprimidos, as motivações torpes, a fragilidade das convicções – em suma, o lado subterrâneo de uma “família de bem” brasileira. O personagem mais incômodo de todos talvez seja o do pequeno Jean, menino emburrado, intratável, que absorve desde cedo a amoralidade e o egoísmo reinantes. A relação idílica, paternal, que parece se esboçar entre ele e o traficante estrangeiro esboroa-se no terrível desfecho.
O fogo, que costuma ser visto como símbolo de purificação, tem aqui um sentido ambíguo. Neste filme impiedoso, não isento de humor negro, tudo vira carvão.
Em tempo: Carvão, que está entrando em cartaz nesta quinta-feira, ganhou no recente Festival do Rio os prêmios de roteiro (Carolina Markowicz), direção de arte (Marinês Mencio) e atriz coadjuvante (Aline Marta Maia). O elenco todo merecia ser premiado.
Kevin
Estreia nesta quinta outro filme surpreendente de uma cineasta brasileira: Kevin, de Joana Oliveira. É uma obra indefinível, combinando documentário, filme de viagem e talvez um pouco de autoficção ao mostrar o reencontro da diretora com a ugandense Kevin Adweko, que foi sua colega de escola há vinte anos, na Alemanha.
Hoje chegando aos quarenta, elas compartilham suas histórias de vida durante uma visita de Joana a Uganda. Kevin é mãe solo de três crianças, Joana perdeu um filho durante a gravidez e ainda carrega o trauma. Nas conversas das duas, bem como nas tarefas e diversões do dia a dia, passa-se em revista uma gama enorme de assuntos, que vão da condição da maternidade ao redesenho das relações entre os gêneros no Brasil e em Uganda.
São duas cidadãs do mundo, cultas, cosmopolitas, e ao mesmo tempo entranhadas na cultura e nas condições sociais de seus países. É com uma leveza encantadora que essa amizade singular se desdobra aos nossos olhos, configurando quase um ideal utópico de relações humanas pautadas pelo afeto, pelo respeito e pela curiosidade recíproca. É um filme de amor. Um antídoto certeiro contra o veneno do ódio e da intolerância que nos acossam.
Por José Geraldo Couto, no Blog do Cinema do Instituto Moreira Salles