Quase 120 milhões de brasileiros não se alimentam adequadamente. Oferta de produtos como arroz e feijão foi apertada pelas commodities. Auxílios sociais são cruciais, mas também planejamento para ampliar a safra local de alimentos nutritivos
O tamanho do problema é gigantesco: mais da metade da população passa fome, come menos do que deveria ou come com péssima qualidade nutricional. Isto envolve 117 milhões de pessoas, sendo que 19,1 milhões dentre elas passam fome, 43,4 milhões comem quantidades menores do que necessitam e 54,3 milhões restantes comem muito mal do ponto de vista nutricional. Sem tentar ir muito longe nesta apresentação, deve-se ter claro que esta é a parcela da população que tem problemas de segurança alimentar e nutricional devido à baixa renda. Há ainda uma outra parcela que não tem problemas para comprar alimentos, mas que se alimenta mal por razões culturais. De toda forma, o resultado deste superproblema de segurança alimentar é uma saúde precária e uma enorme quantidade de enfermidades devidas ao excesso de certos produtos (açúcar, sal, gorduras saturadas, aditivos químicos, transgênicos, outros) ou pela falta de outros fundamentais (fibras, vitaminas, sais minerais, calorias e proteínas). Esta combinação de má qualidade na alimentação com pobreza redunda, entre outras coisas, na “epidemia” de obesidade que acomete inclusive muitos que são subnutridos. A obesidade também ocorre em grandes proporções entre os mais ricos, neste caso estritamente por problemas culturais, obviamente. Doenças derivadas do tipo de alimentação e do estilo de vida, tais como as cardíacas e a diabetes afetam dezenas de milhões de pessoas e são responsáveis por despesas com saúde, aposentadorias precoces e óbitos.
Enfrentar o problema da fome requer ações emergenciais (curto prazo) e estratégicas (longo prazo). No plano emergencial a questão principal é disponibilizar rapidamente alimentos em qualidade e quantidade necessárias para todos os necessitados de forma permanente.
Como a razão principal desta má alimentação é a falta de recursos (pobreza e miséria definem o grau de gravidade de cada situação alimentar) parece ser a solução óbvia fazer o que o Lula fez no Fome Zero e no Bolsa Família ou o que o Congresso votou no início da pandemia em 2020: oferecer uma ajuda (extraordinária e/ou de longo prazo) em recursos financeiros.
O cálculo de quanto deve ser distribuído para cada família em função da sua situação econômica é complexo e foi tremendamente mal trabalhado, sobretudo porque não se calculou o custo de uma alimentação saudável para cada tipo de cidadão (homens, mulheres, crianças, adolescentes, adultos, idosos, mais ou menos ativos fisicamente). Por outro lado, o quanto cada família de pobres ou de miseráveis dispõe para a alimentação dos seus componentes não é um cálculo banal. Em algumas regiões e categorias os gastos necessários para a manutenção da família, além dos alimentares, são maiores do que em outras. Famílias com mais idosos tendem a gastar mais em remédios e tratamentos. Os gastos com habitação também podem ser muito diferentes assim como os gastos com o transporte. Ou seja, é preciso uma pesquisa mais avançada, pois os auxílios entram como um complemento de renda e não para suprir a totalidade das necessidades de uma família, muito embora aconteça no Brasil que este “complemento” seja, provavelmente, maior do que a renda familiar dos miseráveis e da maioria dos pobres.
Procurei bastante por algum estudo que me indicasse o custo de uma alimentação correta do ponto de vista da qualidade nutricional e da quantidade suficiente. A enorme maioria dos artigos e teses que identifiquei trabalhavam com a cesta alimentar da lei do salário-mínimo, de 1937 e com os levantamentos de custos desta cesta feitos regularmente pelo DIEESE. Mas esta dieta prevista há mais de 80 anos já não era adequada nem naquele momento e hoje ela está totalmente fora das indicações dos nutricionistas. A Revista de Saúde Pública publicou, em meados de 2021, um artigo dos pesquisadores do Instituto de Medicina Social, Departamento de Epidemiologia, da UERJ, Eliseu Verly Júnior, Dayan Carvalho Ramos Salles de Oliveira e Rosely Sichieri intitulado “Custo de uma alimentação saudável e culturalmente aceitável no Brasil em 2009 e 2018”. Sem pretender, nem de longe, esgotar o assunto, devo dizer que os autores fizeram um trabalho de alta qualidade e precisão encarando um complexo esforço de análise multidimensional. Vou reter deste artigo, cuja leitura recomendo, apenas os valores da dieta alimentar diária desejável para um brasileiro médio. Ela é calculada com base em uma média do que é consumido em um ano e, obviamente, não quer dizer que as pessoas consumam todos estes produtos nestas quantidades todos os dias. O consumo diário per capita está expresso em gramas e o anual, em quilos. Com esta dieta cada indivíduo ingere 1 quilo e 370 gramas a cada dia, em média. Lembro ainda que esta é uma média nacional, nivelando grandes diferenças de hábitos alimentares do território nacional.
Arroz – 161 gr/dia e 60 kg/ano
Feijão – 150 gr/dia e 70 kg/ano
Carnes – 161 gr/dia e 60 kg/ano (inclui aves, carnes vermelhas e peixes)
Trigo – 112 gr/dia e 41 kg/ano (inclui derivados do trigo como pães, massas, biscoitos e bolos)
Laticínios – 117,5 gr/dia e 43 kg/ano (inclui leite, queijo e iogurte)
Frutas – 186 gr/dia e 110 kg/ano
Hortaliças – 186 gr/dia e 68 kg/ano
Tubérculos – 43 gr/dia e 15,6 kg/ano (inclui batatas, mandioca, inhame, …)
Na dieta pesquisada no mencionado artigo há outros alimentos, consumidos em quantidades menores (óleos, ovos, manteiga, açúcar, oleaginosas, bebidas, produtos acabados, outros). Não os incluí nesta exposição porque o que quero apontar são as carências maiores do ponto de vista da oferta dos produtos e os problemas de atender uma demanda aquecida pelos auxílios emergenciais.
Agora vamos calcular qual a demanda anual destes alimentos para um subconjunto da população brasileira, os maiores de 10 anos. Este recorte foi o adotado no cálculo feito na pesquisa citada. Grosseiramente será preciso retirar da população total cerca de 20 milhões de pessoas. Em outras palavras, o subconjunto conterá 187 milhões de pessoas cuja demanda de alimentos anualmente será (idealmente) de:
Arroz – 10,3 milhões de toneladas
Feijão – 13,1
Carnes – 11,2
Trigo – 7,7
Laticínios – 8
Frutas – 20
Hortaliças – 12,7
Tubérculos – 3
Para fins deste artigo, vou discutir apenas as necessidades de arroz e de feijão, entre todos os alimentos incluídos nesta dieta média nacional idealizada. Esse duo ainda determina a maior parte da ingestão de calorias e proteínas na dieta dos brasileiros, tanto nesta idealizada como na real, aquela que é realmente consumida. É verdade que o papel do arroz com feijão tem caído regularmente na dieta real dos brasileiros e vem sendo substituído pelo consumo cada vez maior de alimentos processados (macarrão com salsicha é o substituto mais comum). A troca é um sinal terrível do ponto de vista nutricional. Estes alimentos processados são mais baratos e não por acaso. Eles são de muito pior qualidade, com excesso de calorias, gorduras, açúcar, sal e aditivos químicos e têm pouca fibra, sais minerais e valor proteico. A troca do arroz com feijão por estes produtos tem a ver com a renda das famílias e os preços crescentes deste duo, assim como com questões como tempo de cozimento e tendências culturais, induzidas pela propaganda.
A demanda anual de arroz, supondo um consumo desejável do ponto de vista nutricional seria, como mostrado acima, de 10, 3 milhões de toneladas. Lembramos que se trata de arroz branco, descascado e processado. A quantidade de arroz em casca para chegarmos a este volume consumido seria de 17,8 milhões de toneladas.
Na nossa realidade dos anos de 2020/2021, o consumo de arroz em todo o país foi de 10,8 milhões de toneladas em casca, ou seja, o consumo de arroz branco foi de 6,3 milhões de toneladas. Em resumo, para que todos tivessem um consumo adequado no padrão de uma dieta saudável, faltaram 7 milhões de toneladas de arroz em casca ou 4 milhões de toneladas de arroz branco. Sabendo disto fica mais fácil de entender a existência de mais de 100 milhões de famintos ou mal alimentados no país. Em tempo, a produção anual ficou mais ou menos de acordo com o consumo real indicado acima, a parcela exportada sendo equivalente à importada.
A demanda anual de feijão, igualmente nos moldes de um consumo desejável, seria de 13,1 milhões de toneladas, como indicado acima. Informações da Conab apontam para o consumo de feijão de 3 milhões de toneladas em 2020. Isto indica uma demanda reprimida da ordem de 10 milhões de toneladas de feijão.
Com uma deficiência no consumo de arroz e feijão da ordem de 7 e 10 milhões de toneladas por ano respectivamente, a pergunta é por que isto acontece em um país apresentado como uma potência agrícola mundial (“agro é tec, agro é pop, agro é tudo”, diz a propaganda na Globo). Em primeiro lugar é importante notar que a produção de arroz e de feijão não parou de cair nos últimos 30 anos, pelo menos. Pode-se dizer que ela nunca foi o suficiente para garantir esta alimentação idealizada no artigo, mas já foi bem maior do que atualmente. Há um duplo movimento que leva ao abandono deste duo, que tem um muito apropriado conteúdo nutricional: de um lado, há um movimento de substituição destes produtos no campo por commodities de colocação no mercado internacional, como a soja, o milho e as carnes, assim como o açúcar e o álcool, a celulose e a laranja. A diminuição da produção de arroz e feijão vai levando a um aumento relativo de seus preços que favorece a sua substituição.
Tudo isto tem a ver com a crescente inclusão de parte dos agricultores familiares na lógica do mercado e da produção agroquímica. Este setor tradicionalmente se dedicou à produção de alimentos para o mercado interno. Quando a agricultura familiar começou a ser atendida pelo Estado, no governo Fernando Henrique, a orientação dada pelos serviços de crédito e assistência técnica os levou a adotar o modelo produtivo do agronegócio e aplicá-lo em pequena escala. O resultado foi um crescente endividamento da agricultura familiar com duas alternativas: o abandono da produção pela venda ou pelo aluguel de suas propriedades para produtores maiores ou a conversão destas propriedades para as produções de maior rentabilidade, como as monoculturas de soja. Uma e outra opção tiveram o mesmo resultado na substituição de culturas alimentares por commodities exportáveis.
Este perfil, tanto de política pública como de resultados, não se modificou nos governos de Lula e de Dilma. Pode-se mesmo dizer que ele se ampliou e intensificou, apesar do sincero propósito de ajudar a agricultura familiar. O Censo Rural de 2017 mostrou que o efeito das políticas dos governos populares foi uma saída líquida de 400 mil famílias de agricultores do mundo rural brasileiro. Cerca de 800 mil famílias saíram do campo e o assentamento de 400 mil outras compensou apenas a metade deste êxodo. O resultado das políticas de apoio ao desenvolvimento da agricultura familiar foi a redução desta categoria em 10% do seu número original em 1994, quando estas políticas começaram a ser aplicadas.
Se repetirmos estes cálculos para os outros itens da dieta idealizada pelos autores do artigo citado, teremos resultados semelhantes, embora talvez não tão expressivos. O consumo de milho e mandioca vem caindo regularmente ao longo das últimas décadas enquanto aumenta o consumo de derivados de trigo, dependente de importações da ordem de 50% da demanda, em média. Há um aumento do consumo de carnes, ovos e laticínios até meados da última década, quando começa a cair. São produtos em que não haveria necessidade de importações para garantir o consumo ideal para todos, salvo os laticínios e o trigo, mas a verdade é que a produção brasileira é fortemente voltada para o mercado internacional que compete com a demanda interna. O consumo de hortaliças e frutas subiu um pouco nas últimas décadas, mas ainda está muito longe do nível recomendado em uma dieta saudável. A produção nacional atual não dá conta de responder a um aumento da demanda na hipótese de garantir a dieta recomendada para todos.
Como se vê, o problema é maior do que a simples distribuição de ajudas financeiras, extraordinárias ou permanentes. No curto e médio prazo teremos que adotar uma política de importação de alimentos de forma a garantir que a ajuda dirigida (cujos valores teriam que ser rediscutidos em função do custo destas importações) aos pobres e miseráveis possa cobrir o aumento da demanda. Sem isso teremos apenas um aumento da inflação de alimentos e a manutenção de uma boa parte do público destas políticas com acesso apenas parcial à dieta recomendada. Para evitar a especulação com os alimentos o Estado deveria organizar as compras e estocagem dos produtos mais sensíveis, orientando a distribuição em todo o país.
Qual o custo desta dieta necessária? O estudo mencionado aponta para um valor em 2018, que eu atualizei, arredondando, para os dias de hoje, de R$ 14/dia por pessoa, na média nacional. Isto significa (ainda arredondando) R$ 420/mês. Isto é mais do que o montante da ajuda extraordinária atual de R$ 400, chamada de BolsaBolso e que é dirigida para uma família que se supõe ser, em média, de quatro pessoas. Entre os classificados como miseráveis a renda familiar per capita é de R$ 120, ou seja, a renda mensal total da família média hipotética é de R$ 480. Somando esta renda com a ajuda chegamos a R$ 880, enquanto o custo da alimentação chegaria a R$ 1.260 (calculado para três dietas, dois adultos e duas crianças). Mesmo supondo que esta categoria de miseráveis não tenha muitas outras despesas incompressíveis e que use a quase totalidade dos recursos acima apontados para comprar alimentos, ela não chegaria a cobrir os custos da dieta considerada necessária para uma alimentação saudável. É claro que estes valores não levam em conta o eventual aumento da demanda destes produtos promovida pelo programa de ajuda governamental. Este aumento elevaria os preços dos alimentos pela baixa oferta de muitos deles, se não forem importados.
Enfrentar o complexo problema da fome vai implicar em redefinir o valor da ajuda governamental, organizar a importação, estocagem e distribuição de alimentos e aprofundar as diferentes situações do público-alvo para poder calibrar o tamanho da ajuda para diferentes níveis de necessidades. Este esforço deveria ser coordenado por uma comissão que siga os passos do antigo Consea, extinto por Bolsonaro. Além disso, seria fundamental a criação de uma agência executiva que tratasse da operação do conjunto das políticas de combate à fome. No Consea deveriam participar agentes governamentais e da sociedade civil, de ONGs voltadas para o tema a representantes do mercado de produtos alimentares, de produtores a importadores e distribuidores de alimentos. No órgão executivo deveriam estar técnicos de diferentes ministérios além de especialistas nos temas de nutrição, avaliação da pobreza, logística e importações. O regime militar chegou a criar um organismo com este fim, o Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição, que chegou a produzir estudos e propostas interessantes, mas que nunca foi operacional. (Por Jean Marc von der Weid)
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