Fundamentalismo religioso cresce sob Bolsonaro e coloca a democracia em crise

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Pesquisadora afirma que nunca na história brasileira houve tanto protagonismo evangélico no espaço público

Embora nossa tendência seja a de pensar a democracia como uma constante, ao menos na América Latina isso não ocorre de forma contínua, mas sempre por meio de uma tensão por parte dos setores conservadores. “Importa demarcar que ‘democracia’ não é regra na América do Sul, mostra-se sempre como intervalos de predomínios de governos autoritários. Isto decorre da estrutura de sociedade estabelecida na América Latina, assentada em três forças impostas pelo colonialismo: patriarcalismo, latifúndio e escravização, concretizadas na autoridade do homem branco, na grande propriedade e no racismo”, pondera a professora doutora e pesquisadora Magali Cunha.

Neste contexto, grupos religiosos cristãos passaram a ocupar progressivamente um espaço mais ostensivo nas instâncias de poder de Estado. “Observa-se o fortalecimento da articulação entre lideranças políticas evangélicas, lideranças evangélicas midiáticas, lideranças católicas e políticos/as não religiosos/as, empresários/as e ruralistas, afinados com as pautas reacionárias, formando um conglomerado de lideranças que compõem um quadro de reverberação de pautas conservadoras, com amplo apoio do eleitorado”, complementa.

Ocorre, no entanto, que o fundamentalismo político não é, nenhum pouco, exclusividade de grupos religiosos. “A intolerância e o fanatismo que podem manifestar-se nos fundamentalismos também estão presentes na mentalidade e ações dos grupos políticos de esquerda e de centro”, recorda a entrevistada. Nesse sentido, ao propor alternativas ao atual cenário, projeta que um “desafio específico para igrejas é a criação de novos programas de leitura popular da Bíblia contextualizada e ecumênica, colocando as Escrituras Sagradas no centro de projetos de formação de lideranças cristãs que superem a lógica dos fundamentalismos no manejo do texto bíblico”.

Magali do Nascimento Cunha é doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP), mestra em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e graduada em Comunicação Social, Jornalismo, pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Realizou estágio pós-doutoral em Comunicação e Política, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). É coordenadora do Grupo de Pesquisa Comunicação e Religião da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom), também integra a Associação Internacional Mídia, Religião e Cultura (International Association Media Religion and Culture) e a Associação Mundial de Comunicação Cristã (World Association for Christian Communication, WACC). Entre as obras publicadas, destacamos Religião no noticiário: marcas de um imaginário exclusivista no jornalismo brasileiro e Mídia, religião e cultura: percepções e tendências em perspectiva global (Prismas, 2016).

 A pesquisadora Magali Cunha, que estuda grupos evangélicos e política (Iser/Divulgação)A pesquisadora Magali Cunha, que estuda grupos evangélicos e política (Iser/Divulgação)

Confira e entrevista:

Embora se fale muito sobre “fundamentalismo”, o que caracteriza um fundamentalismo, especialmente um fundamentalismo religioso?

A origem do termo remonta à tendência conservadora de um segmento protestante dos Estados Unidos, na virada do século 19 para o 20, enraizado na interpretação literal da Bíblia, classificada como inerrante, em reação à modernidade (encarnada na teologia liberal e no estudo bíblico contextual com mediação das ciências humanas e sociais), em defesa dos fundamentos imutáveis da fé cristã. De lá para cá, a perspectiva fundamentalista foi se transformando, no interior do evangelicalismo mesmo, e ultrapassou as fronteiras da religião. Torna-se uma matriz de pensamento, uma postura, ancorada defesa de uma verdade e na imposição dela à sociedade.

A pesquisa que coordenei para o Fórum Ecumênico ACT Aliança Sul-Americano (Fesur) oferece várias descobertas, entre elas, a concepção da configuração de fundamentalismos político-religiosos na América do Sul, conceituando-os, no plural, a partir de uma reconstituição histórica de suas diferentes expressões. Nesse sentido, escapando do uso do termo que denota acusação e rótulo de contrários, o resultado mostra que os fundamentalismos podem ser entendidos como uma visão de mundo, uma interpretação da realidade, com matriz religiosa. Esta é combinada com ações políticas decorrentes dela, para o enfraquecimento dos processos democráticos e dos direitos sexuais, reprodutivos e das comunidades tradicionais, num condicionamento mútuo.

Também se identificou, como descoberta, que a matriz religiosa dos fundamentalismos em avanço não é desenvolvida por evangélicos tão só (do ramo histórico e dos pentecostais) mas também por católico-romanos, que se articulam em uma unidade oportunista em torno de pautas e inimigos comuns.

As pautas fundamentalistas que unem lideranças e segmentos evangélicos e católicos são embasadas na moralidade sexual religiosa e na demonização e inferiorização de indígenas e afrodescendentes. Elas servem ao sistema econômico neoliberal ao apregoarem a redução de políticas públicas (ação do Estado, portanto), relegando à “família” o cuidado com educação, saúde, trabalho, aposentadoria, e ao facilitarem as conquistas de terras de populações tradicionais pelo agronegócio e por mineradoras. Por isso a classificação “fundamentalismos político-religiosos”. São identificados como inimigos, movimentos sociais, sindicatos, partidos que buscam defender esses direitos e essas populações.

A senhora considera que vivemos uma democracia em crise? Como tal crise se caracteriza?

A pesquisa Fesur comprovou a hipótese de que existe um padrão de ação sistemático desenvolvido por diferentes fundamentalismos, resultado de uma estratégia que ameaça e busca controlar as democracias dos países sul-americanos. Esse padrão de ação afeta diretamente o exercício dos defensores dos direitos, desafia as respostas desenvolvidas pelas Organizações Baseadas na Fé (OBFs) e igrejas vinculadas à ACT Aliança e reduz o ambiente ou o espaço propício para a sociedade civil na região. Foi apresentada uma descrição analítica da região como um terreno fértil para a emergência de fundamentalismos com a reação católica romana ao declínio de fiéis, o crescimento dos pentecostalismos, a fragilidade das democracias e do campo dos direitos, com a realidade sociopolítica, econômica e cultural ancorada no colonialismo e nas ditaduras e centrada nos pilares do patriarcalismo, do latifúndio e da escravização. Levou-se em conta as transformações que o conceito de fundamentalismo experimentou ao longo da história: suas origens nos Estados Unidos do início do século 20 às novas incursões relacionadas à política no século 21.

Como síntese teórica, a pesquisa assumiu o termo “fundamentalismo” no plural para compreender as expressões político-religiosas que se manifestam na contramão da democracia e dos direitos humanos. Fundamentalismos (no plural, portanto) são compreendidos na pesquisa como uma visão de mundo, uma interpretação da realidade, com matriz religiosa, combinada com ações políticas decorrentes dela, para o enfraquecimento dos processos democráticos e dos direitos sexuais, reprodutivos e das comunidades tradicionais, políticas de valorização da pluralidade e da diversidade, num condicionamento mútuo.

Aqui é importante demarcar o terreno fértil para as expressões fundamentalistas na América do Sul, com explicação na história a partir de dois eventos que marcam profundamente a realidade sociopolítica e cultural dos países: o colonialismo de Espanha e Portugal, do século 16, e as ditaduras militares. Neste sentido importa demarcar que “democracia” não é regra na América do Sul, mostra-se sempre como intervalos de predomínios de governos autoritários. Isto decorre da estrutura de sociedade estabelecida na América Latina, assentada em três forças impostas pelo colonialismo: patriarcalismo, latifúndio e escravização, concretizadas na autoridade do homem branco, na grande propriedade e no racismo. O antropólogo brasileiro Gilberto Freyre (2003) explica que a formação patriarcal do Brasil se explica mais por seu alicerce econômico, de experiência de cultura e de organização da família, que foi a unidade colonizadora. Os senhores rurais eram, segundo Freyre, donos das terras, donos dos homens, donos das mulheres. Com isso, se assentou uma cultura baseada na solidez patriarcal: a estabilidade dos homens brancos apoiada nas plantações dos latifúndios e nos negros.

Nesse ponto, vale ressaltar o termo cunhado pela filósofa e teórica política estadunidense Wendy Brown, “desdemocratização”, para compreender este contexto no qual se dão os retrocessos na realização dos direitos humanos. Em seus estudos, Brown identifica um processo de desdemocratização nos Estados Unidos, uma erosão gradual do tecido democrático, deflagrada com a “guerra ao terror” após o 11 de Setembro de 2001 e a crescente interferência do conservadorismo religioso nas políticas públicas. A pesquisadora atribui à desdemocratização um efeito que combina neoliberalismo com repolitização do campo religioso (a revitalização política da religião, referida por Jürgen Habermas citada acima neste texto).

No que diz respeito ao neoliberalismo, Wendy Brown identifica um primeiro efeito da “onipresente” economia neoliberal do século 21: reduzir a política democrática a leis e a instituições e diminuir o marco dos direitos sociais aos direitos de propriedade e de voto. A pesquisadora avalia que isto despolitiza a esfera pública e a vida social, corroendo a autonomia política e desqualificando a presença e a participação de pessoas na vida política. Com isso, a racionalidade neoliberal enfatiza o individualismo e transforma cidadãos em consumidores e “empreendedores” de sua sobrevivência econômica. Tudo isto torna a dimensão política da vida em comum em uma dimensão secundária, e produzem indiferença. Ao reduzir o Estado a um gestor público, este sistema facilita e legitima formas de exercícios de poder político que são antidemocráticas e ganham ares neofascistas, alimentados por racismo, xenofobismo e machismo. Os casos levantados pela pesquisa Fesur, Brasil entre eles, ilustram nitidamente esta realidade.

Qual o papel das religiões na crise da democracia?

A repolitização das religiões neste século 21 é um elemento muito forte neste processo de “desdemocratização”, uma vez que o conservadorismo religioso atua no disciplinamento das subjetividades, tornando-as politicamente submissas à hierarquia e à autoridade, cidadãos obedientes, “patriotas”, o que facilita a imposição de lógicas autoritárias de exercício do poder. Wendy Brown mostra como o Estado neoliberal assume a lógica de uma governança pastoral, isto é, modela a autoridade do Estado na autoridade da Igreja, estabelecendo uma relação pastoral do Estado com “seu rebanho” e uma preocupação com o poder estatal unificado em vez de equilibrado ou controlado. A combinação de neoliberalismo com repolitização do campo religioso pode ser identificada na América do Sul, o que embasa a emergência dos fundamentalismos religiosos-políticos na região.

É no assento religioso católico e evangélico que os novos fundamentalismos se expressam nos anos 2000 na América do Sul. Observa-se o fortalecimento da articulação entre lideranças políticas evangélicas, lideranças evangélicas midiáticas, lideranças católicas e políticos não religiosos, empresários e ruralistas, afinados com as pautas reacionárias, formando um conglomerado de lideranças que compõem um quadro de reverberação de pautas conservadoras, com amplo apoio do eleitorado. Além de estas expressões fundamentalistas manifestarem-se nos poderes executivo e legislativo, um elemento novo é o alcance do poder Judiciário (caminho descoberto pelos movimentos religiosos politizados para barrarem e impedirem direitos, com o apoio de juízes e autoridades judiciárias que estão vinculadas ou são simpatizantes de grupos religiosos e/ou movimentos reacionários).

Ativistas religiosos, tanto católicos quanto evangélicos, têm buscado instruir legisladores, judicializar a questão da anticoncepção, da ampliação de direitos LGBTI+ e de comunidades tradicionais (neste último caso, em aliança com ruralistas e mineradoras). Busca-se, com isso, instigar que os fiéis qualificados ocupem funções no Estado como políticos, funcionários públicos, promotores e juízes, a fim de defender suas crenças “pela vida” no desempenho de suas funções. Estas são formas nítidas de enfraquecimento da democracia que fazem uso dos próprios canais do sistema democrático.

Bolsonaro e OnyxLorenzoni fazem oração durante cerimônia no Congresso (Carolina Antunes/PR)Bolsonaro e Onyx Lorenzoni fazem oração durante cerimônia no Congresso (Carolina Antunes/PR)

De que forma a relação do presidente Bolsonaro com líderes religiosos de grandes igrejas neopentecostais galvaniza o apoio dos evangélicos ao seu governo?

É preciso ler o apoio evangélico a Bolsonaro a partir do imaginário religioso destes grupos. Nunca houve um poder público em nível nacional que proporcionasse tanto protagonismo à minoria religiosa chamada evangélica no país. Jair Bolsonaro tem cumprido fielmente sua parte na aliança firmada desde 2016. Naquele ano, ele se filiou ao PSC (Partido Social Cristão), loteado pelas Assembleias de Deus, e, mantendo-se católico, participou de um rito de passagem: o batismo nas águas do Rio Jordão em Israel, pelo próprio presidente do partido, Pastor Everaldo.

Apesar de não ter se candidatado à Presidência pelo PSC, o apelo ao apoio da população evangélica conservadora estava mantido, com o discurso moralista de salvação da “família tradicional”, contra os movimentos feminista e LGBTI+, tidos como inimigos, somado à construção de uma aparência de devoto (orações em eventos públicos, falas citando textos da Bíblia), mais o uso do atentado a faca que sofreu como imagem de doação e martírio.

Com o alcance do poder, a expressiva parcela do segmento cristão evangélico, que garantiu os votos ao ex-capitão, ganhou espaços e cargos significativos. O Ministério de Direitos Humanos foi esvaziado para dividir espaço com Mulher e Família, dois alvos do discurso reacionário, e passa a ser dirigido pela pastora pentecostal Damares Alves. Este ministério é o que tem mais religiosos do segmento na ocupação de cargos-chave. O importante Ministério da Casa Civil foi ocupado pelo originalmente luterano Onyx Lorenzoni, que recentemente foi para a Secretaria-Geral da Presidência, tendo passado pelo Ministério da Cidadania. A Secretaria-Geral da Presidência já havia sido ocupada pelo general da Igreja Batista Luiz Eduardo Ramos, que acabou assumindo o Ministério da Casa Civil, em 2021. Desde o início do governo, o ministro da Advocacia-Geral da União é o pastor presbiteriano André Luiz Mendonça, que fez uma “bate-volta” no Ministério da Justiça em 2020. O pastor presbiteriano Milton Ribeiro passou a ocupar o Ministério da Educação em 2021. O deputado federal Fabio Faria, da Igreja Batista, foi nomeado para o recém-criado Ministério das Comunicações. Eis aí um total de seis evangélicos no primeiro escalão do governo federal (sem esquecer que o Ministério do Turismo já foi ocupado pelo pentecostal Marcelo Álvaro Antônio), com um número significativo no segundo escalão – feito inédito – em especial com líderes que sempre atuaram com educação e ação social, marca significativa das igrejas históricas.

No Congresso Nacional, há a Bancada Evangélica que oferece total apoio ao governo federal. Soma-se a isto a visibilidade que evangélicos alcançaram no Judiciário, especialmente com o messianismo criado em torno da Operação Lava Jato, alimentado pelas figuras do procurador batista Deltan Dallagnol e do juiz federal do Rio de Janeiro, o pentecostal Marcelo Bretas.

Elementos simbólicos construídos durante os mais de dois anos de governo têm dado vazão ao regozijo dos sustentadores evangélicos de Jair Bolsonaro e consequente manutenção do apoio. Entre eles estão a primeira participação de um presidente da República na massiva Marcha para Jesus de São Paulo (junho de 2019), a declaração de Bolsonaro de que nomeará um ministro para STF que seja “terrivelmente evangélico”, e abertura de espaço na disputada agenda do presidente para receber pastores com frequência e visitar igrejas.

Lideranças evangélicas no front de defesa de Bolsonaro

“Nunca na história deste país” houve tanto protagonismo evangélico no espaço público. No que tange aos líderes evangélicos pentecostais (pastores, bispos, apóstolos, missionários) que declaram publicamente seu apoio a Jair Bolsonaro desde 2018, não é difícil compreender as motivações. Estas figuras são conhecidas no cenário religioso e político: são líderes de grandes igrejas, e de outras nem tanto, que alcançaram status em termos de patrimônio e influência social, com visibilidade nas mídias e representação no parlamento. Aqui importa a aliança com um poder, qualquer que seja, que ofereça a manutenção deste status, quiçá sua ampliação. Isto foi oferecido por Jair Bolsonaro em troca de apoio e vem sendo cumprido.

Um exemplo frequente no noticiário é a realização de repasses pelo governo federal, sem edital de concorrência, a instituições evangélicas, em especial via Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, liderado pela pastora batista Damares Alves, e via programa Pátria Voluntária, liderado pela primeira-dama, também batista, Michelle Bolsonaro. Outro exemplo é o perdão de dívidas de igrejas com a Receita Federal e o INSS, aprovado em março passado, que beneficia grande fatia deste grupo.

Um de seus mais famosos porta-vozes chegou a declarar em uma reportagem: “Por enquanto, não tem ninguém que possa fazer frente a Bolsonaro no mundo evangélico. Ninguém”, e citou os pastores José Wellington Bezerra da Costa e Manoel Ferreira (Assembleia de Deus), Edir Macedo (Igreja Universal do Reino de Deus), R.R. Soares (Igreja Internacional da Graça de Deus) e Valdemiro Santiago (Igreja Mundial do Poder de Deus).

Este líder desconsiderou apoiadores evangélicos históricos, mas a relevância deste grupo já foi destacada acima. Não é por acaso que não há um pentecostal sequer entre os ministros de Estado. Para a composição ideológica, o governo Bolsonaro articulou aliança com o grupo evangélico que historicamente exerceu influência na vida nacional, e é proprietário de escolas e universidades, e tradicionalmente promove projetos de ação social, tendo ocupado, no passado recente, posições, por exemplo, no Conselho Nacional de Educação e em instâncias jurídicas.

Exercer influência na vida do país já era a ideologia dos missionários batistas, presbiterianos, metodistas, luteranos que chegaram no século 19. A parcialidade desta influência que nunca havia alcançado o poder sonhado, com uma Presidência da República, foi superada com o governo de Jair Bolsonaro.

Este grupo está alicerçado no american way of life, na piedade puritana da salvação individual, no fundamentalismo da teologia do domínio (“o governo de Deus sobre todas as nações”) e da guerra a inimigos (o combate ao que chamam de “humanismo”, incorporado nos movimentos feminista, LGBTI+, no ecumenismo, e em um comunismo imaginário). Com isso, ganham força segmentos como a Associação Nacional dos Juristas Evangélicos (Anajure) e programas para domar os “sempre rebeldes jovens”, como o The Send, o Projeto Dynamus, apoiados por missões dos Estados Unidos que já atuam por aqui, como Jovens com Uma Missão (Jocum), entre outras.

Foi assim que o fundamentalismo conseguiu, com o governo Bolsonaro, se tornar parte das políticas de Estado. Vide a ocupação da Fundação Nacional do Índio (Funai) por missionários, o desmoronamento do Ministério da Educação e a promessa de nomeação de um ministro “terrivelmente evangélico” para o Supremo Tribunal Federal (STF).

Por outro lado, como superar uma visão viciada e reducionista sobre a base neopentecostal, pensando suas complexidades para além da defesa de diversas posições do atual governo?

Neste ponto, estamos falando da massa de igrejas pentecostais, no plural, são muitas igrejas e expressões, compostas por membros das igrejas e fiéis simpatizantes do mundo evangélico, que revelaram no voto adesão à política atual e seguem sendo contados nas pesquisas de opinião como fonte de “apoio inabalável”.

Os mais de 30 anos de cultura gospel, que embasaram o crescimento numérico, geográfico e patrimonial do segmento, intensificaram o individualismo que está no DNA do jeito de ser evangélico. As bases foram as teologias da prosperidade e da guerra espiritual, que abrasaram a arrogância do exclusivismo religioso que marca este grupo cristão, e oferecem, por hipótese, uma explicação.

Esta cultura formou uma geração inteira de evangélicos, históricos também, mas, principalmente pentecostais, cuja expressão religiosa tornou-se ancorada em noções como “Deus está no controle”, “estar na visão”, “tomar posse da bênção”, “pare de sofrer! “, “pisar na cabeça do inimigo”, “Deus é fiel em retribuição à fidelidade no dízimo e na frequência a uma comunidade de fé”, entre tantas outras.

Esta doutrinação foi promovida por celebridades midiáticas e artistas, que relativizam a autoridade das lideranças. Isto ainda potencializa o que alguns estudiosos chamam de “trânsito religioso”, a opção de fiéis pela não vinculação formal, a fim de transitar pelas igrejas que mais satisfazem suas necessidades prementes.

É fato que a orientação para “seguir os líderes”, os que “têm a visão”, também colabora no processo de alinhamento político com a política bolsonarista. Porém, não se pode perder de vista como este ideário responde ao imaginário que povoa pessoas simples, do universo popular, religiosas ou não, com as noções de “proteção à família” e empreendedorismo para não depender de patrões, como no mote repetido nas igrejas “somos cabeça e não cauda”.

Esta concepção também tem ressonância nas classes médias que se orientam por desejos, busca de harmonia, estabilidade e felicidade, ancoradas em um passado idealizado de privilégios de classe e de invocação da meritocracia.

É preciso considerar imaginários comuns utilizados pela campanha de Jair Bolsonaro que perpassam esses diferentes grupos sociais. Um deles é o do mártir salvador, messias ungido, evocado no “episódio da facada”, que, se configura no combatente dos “inimigos da pátria” (movimentos sociais e partidos que atuam para “destruir a família”). Esta construção imaginária, intensificada com fake news, tem se mostrado um fluido poderoso e eficaz!

Não se pode desprezar ainda o efeito do apelo populista a que o presidente do Brasil recorre com a imagem do homem de gestos e costumes simples, que diz o que pensa sem medir consequências, não tem medo de opositores, não deve nada a ninguém e daquele que manda com “autoridade”. Nesse caso não há religião que cure o afeto a lideranças populistas. Pelo contrário, a religião muitas vezes tem sido recurso comum nestas práticas. Levar em conta esses elementos é fundamental para se pensar esta base de apoio religioso a Jair Bolsonaro.

No que se refere à chamada “pauta de costumes”, ou melhor dizendo, pauta conservadora, há diferenças entre cristãos católicos, protestantes e neopentecostais? Se há, quais são? Se não, por quê?

Há o que podemos chamar de convergência de propósitos ou um ecumenismo de conveniência, que aproxima estes grupos até então separados, em disputas no campo religioso, que se unem em torno de uma pauta comum na esfera política. A pauta fundamentalista produz efeito na agregação de projetos conservadores – política, direitos sociais, moralidade -, uma convergência de princípios, de ideias, mas pelo processo de ressonância – embates contra os inimigos de tal modo que se reconhecem e se unem aí. Esta formação discursiva/ideológica é um abrigo coletivo que só existe porque os inimigos comuns (movimentos sociais, partidos de esquerda) foram eleitos e lutam contra eles.

Católicos e evangélicos reacionários aos avanços nos direitos sociais e sexuais no Brasil contemporâneo agem como na aliança entre cristãos católicos, ortodoxos e evangélicos formada para enfrentar “o perigo marxista” do período pós-segunda guerra. Apresenta-se aqui um movimento que busca a unidade para tomar posição contrária frente a outros movimentos. Um forte exemplo é a chamada Bancada da Bíblia no Congresso Nacional, com a unidade de ações da Bancada Evangélica com a Bancada Católica.

Qual a importância de pensarmos as complexidades no apoio de cristãos ao governo Bolsonaro, sem cairmos em uma polarização entre católicos e evangélicos?

Meu foco de estudos em religião e política é nos evangélicos. Não tenho estudos sobre os católicos, mas é fato que o apoio cristão ao governo Bolsonaro passa também pelo catolicismo conservador. A reunião organizada pela Bancada Católica no Congresso Nacional em junho de 2020, com o presidente Bolsonaro, foi bastante ilustrativa disto. A reunião contou com a presença de deputados federais da bancada, presidida por Francisco Júnior (PSD-GO) e representantes de alguns dos maiores grupos católicos de comunicação, como o padre Welinton Silva, da TV Pai Eterno, ligada ao Santuário Basílica do Divino Pai Eterno, em Trindade (GO), o padre e cantor Reginaldo Manzotti, da Associação Evangelizar é Preciso, o empresário João Monteiro de Barros Neto, da Rede Vida, e o padre João Henrique, da Aliança de Misericórdia.

Na fala de abertura, o deputado Francisco Jr. fez uma fala emblemática: “Estamos um pouco enciumados. Nós somos a maioria e a maioria é que ganha eleição sempre”, alegou para quem as pautas da bancada “têm a cara de Jair Bolsonaro”. Já o deputado Diego Garcia (Podemos-PR) afirmou a Bolsonaro que a bancada quer fortalecer o governo. “O senhor pode contar 100% nas matérias pertinentes em apoio ao governo”. Enquanto o deputado Eros Biondini (Pros-MG) afirmou que há “empresários católicos alinhados com o governo” interessados em investir no Brasil e defendeu a liberação de verbas para entidades filantrópicas do setor que mantêm unidades de saúde. O padre João Henrique descreveu o presidente, na reunião, como alguém que enfrenta uma “batalha espiritual” que exige “armas espirituais”. “A gente se identifica muito com as batalhas que o senhor está travando, somos muitos na Igreja Católica que oramos pelo senhor. Sentimos saudade do senhor. A Igreja Católica quer abraçar o seu filho e desejaria tê-lo mais próximo e mais atuante dentro da Igreja”. E foram feitas ofertas ao presidente, de espaço nas mídias católicas para ajudar a fortalecer sua imagem. Essa reunião mostra que os evangélicos não podem levar sozinhos o emblema de religiosos apoiadores de Bolsonaro.

Como construir um diálogo inter-religioso capaz de sensibilizar parte dos cristãos sobre as contradições do projeto de governo de Bolsonaro em relação ao Cristianismo?

A pesquisa Fesur levantou com ativistas e lideranças das igrejas alguns elementos muito importantes neste aspecto. Um primeiro diz respeito à relevância de uma autocrítica dos grupos que atuam em defesa da justiça, da paz e dos direitos humanos, considerados progressistas, ecumênicos, ou perfil similar, que se colocam em oposição ao avanço dos fundamentalismos. Reconhece-se que estes grupos subestimaram a emergência destes novos fundamentalismos, generalizaram suas proposições e perfis, não prestaram a atenção devida à complexidade e capacidade de articulação deles, não os viram como ameaça e quando ela se configura concretamente, buscam uma reação sem uma compreensão mais apurada da situação.

Há o alerta de que o discurso sobre o fundamentalismo provém de subjetividades que não se julgam fundamentalistas e com isso essas pessoas e grupos definem o fundamentalismo pejorativamente, como uma acusação a evangélicos pentecostais ou a católicos, assim como se faz com o islã na Europa e nos Estados Unidos. A intolerância e o fanatismo que podem manifestar-se nos fundamentalismos também estão presentes na mentalidade e ações dos grupos políticos de esquerda e de centro. Há certa dificuldade de se tratar de questões identitárias oriundas e protagonizadas pelos movimentos feminista, LGBTI+, indígena e negro, cujas visões e posturas pouco dialógicas de certos grupos envolvidos acabam dividindo o mundo em muitos fragmentos, polarizam e criam conflitos que poderiam ser evitados. Entre grupos progressistas não religiosos há o preconceito contra ativistas religiosos, como se todos fossem fundamentalistas. Por estas posturas, acaba-se reproduzindo autoritarismos e posse de verdades.

A partir da autocrítica, é importante refletir sobre o papel da religião na nossa realidade. Identificar com atenção qual tem sido o lugar da religião no cotidiano, na cultura e não só na política. Admitir que não há um papel apenas, são papéis plurais da religião. É preciso atentar para a ambiguidade destes papéis. É imprescindível assumir que as religiões, não só o Cristianismo, têm uma função de sustentação da vida na região. Esta sustentação da vida foi percebida de maneira estrondosa, nos últimos tempos, como algo também rentável economicamente, por todos os grupos religiosos. A multiplicidade de templos, movimentos e mídias dentro das igrejas é econômica e simbolicamente rentável. Gera alegria ter adeptos, ter gente que escuta os discursos produzidos.

A partir destas bases, foi destacadamente apontada a necessidade de os grupos religiosos retomarem ações de desenvolvimento do pensamento crítico, que tanto enfatizaram nos anos 1980. Priorizar as bases, o trabalho comunitário. Retomar a formação da consciência crítica. Isto demanda educação, aprender a escutar e propor mudanças. Implica também trabalhar com a memória e a história dos grupos religiosos e dos movimentos sociais e seus efeitos sobre o presente. Memória que deve ser recuperada e ressignificada. Se grupos fundamentalistas estão formando para a “religião capitalista”, importa retomar a formação comunitária crítica a este sistema, revisando a agenda dos Direitos Humanos e da democracia participativa.

Neste ponto é importante a retomada dos programas de educação popular, com espaços de formação e de comunicação alternativa ressignificados em possíveis ações presenciais (cursos, debates, rodas de conversa) e digitais (produção e circulação de conteúdo em mídias sociais).

Um desafio específico para igrejas é a criação de novos programas de leitura popular da Bíblia contextualizada e ecumênica, colocando as Escrituras Sagradas no centro de projetos de formação de lideranças cristãs que superem a lógica dos fundamentalismos no manejo do texto bíblico.

Plubicado originalmente em IHU On-Line

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