Músico inicia turnê europeia em família para celebrar seu legado ancestral. Tornado imortal pela Academia Brasileira de Letras, Gil conquista em vida o reconhecimento por sua contribuição artística e filosófica.
Quando tinha apenas três anos de idade, Gilberto Gil já demonstrava saber o que desejava para sua vida. “Mãe, quero ser ‘musgueiro’ e pai de menino”, falava. Músico: foi o que tentou dizer a criança de sonhos adultos. Aos 80 anos, com barbas e cabelos brancos, Gil encarna o arquétipo do Preto Velho nas umbandas. No domingo (26/06), o baiano se tornou um octogenário com os sonhos de menino realizados na plenitude.
Acompanhado pela extensa família musical que construiu, ele sobe ao palco na Alemanha neste domingo, em show que marca o início de uma turnê dos Gil na Europa.
“Serei um ancestral. Tive muitos filhos, tenho muitos netos, enfim, uma família grande. Isso vai se esparramar pelo mundo. A minha família se ampliou através da vida cultural, da música, e se tornou uma coisa ampla, que não é só minha família. É uma família nacional, até internacional. Eu acho que o legado é este”, refletiu o baiano, em entrevista recente ao programa Roda Viva, da TV Cultura.
A turnê do aniversário de 80 anos com a família coroa a bela trajetória de vida construída pelo artista. A riqueza de seu olhar fez do compositor um portal de contemplação da vida em suas mais variadas dimensões. Nos últimos tempos, passou a ser chamado de Orixá — e assumiu o posto.
“Eu digo assim: tudo bem, qual é o problema? É deles que eu venho”, comentou, na mesma entrevista. Pela calma e sabedoria com que Gil encara a vida, dá a impressão de estar no Samadhi, o estado elevado de consciência descrito pela Yoga.
O contato com a prática milenar indiana começou quando se encontrava preso pela ditadura militar, em janeiro de 1969. A imersão do artista em seu mundo interior resultou em uma obra musical profundamente filosófica, que abrange da ciência à espiritualidade – dois campos dos quais ele se recusa a divorciar.
O universo de Gil é avesso à criação de fronteiras e delimitações. Como gosta de dizer, inspirado no taoismo chinês, tudo é e não é. Instado a se posicionar, o baiano sempre preferiu contemplar. Mas soube se adaptar quando a vida o colocou frente a necessidade de tomar decisões pragmáticas, como no período em que foi ministro da Cultura, entre 2003 e 2008.
“Aquele momento me ensinou muito a priorizar, coisas que eu não preciso no existencial doméstico. No existencial solitário meu, eu não preciso priorizar nada. Eu, dentro de mim mesmo, deixo o caos se levar como quiser. Ali não, ali eu tinha o orçamento: para onde vai o projeto, que projeto acolher”, recordou, na entrevista ao Roda Viva.
Parabolicamará: local e global em diálogo
Sua gestão à frente do extinto Ministério da Cultura é lembrada pela implementação dos pontos de cultura e demais iniciativas voltadas à democratização do acesso à cultura cibernética. Parabolicamará, título do seu disco gravado em 1992, sintetiza a visão que norteou seu olhar para a cultura como gestor público: a inserção da dimensão local, representada pela saudação de capoeira “camará”, no mundo globalizado.
Foi essa abertura da antena artística do ex-ministro que resultou na Tropicália, movimento artístico que concebeu ao lado de Caetano Veloso. A inspiração veio do fascínio de Gil por sonoridades que chegavam simultaneamente do Nordeste brasileiro e de Liverpool. Enquanto puristas defendiam uma música brasileira “pura”, os baianos abraçaram a guitarra elétrica.
“Essa ideia do Refazenda já estava ali naquilo tudo. Eram os Beatles e Luiz Gonzaga, eram os Rolling Stones e Jorge Ben Jor, era a banda de Pífanos de Caruaru e o Jefferson Airplane”, conta em entrevista para o documentário Uma Noite em 67, de Renato Terra e Ricardo Calil.
Gilberto Gil foi ministro da Cultura durante governo Lula Foto: Georgios Kefalas/KEYSTONE/picture alliance
“Tudo isso provocou em mim um desejo muito grande de revolver de uma forma mais generosa, mais ampla e mais ousada o terreno todo, arar de novo o terreno, replantar, semear coisas novas, trazer sementes novas, fazer os cultivares híbridos, misturar as coisas para dar plantas novas”, completa, no mesmo depoimento.
Embora o ímpeto antropofágico tenha partido de Gil, ele sempre insistiu que a conformação da Tropicália como movimento artístico só se deu pela ação de Caetano. O confronto com as barreiras estéticas estabelecidas no ambiente musical brasileiro da época era desconfortável para alguém de perfil pacificador.
“O espírito da minha música não é este. Minha música é o ‘ôm’, é o que ela quer ser. Então, não cabe divisão nenhuma, nada, ‘até aqui é uma coisa, até aqui não’. Não era eu. O Tropicalismo foi a fase agônica da minha vida musical”, diz em Uma Noite em 67.
A excentricidade do movimento desagradou à ditadura militar, que ordenou a prisão de Caetano e Gil em 27 de dezembro de 1968, poucos dias após o Ato Institucional nº5 (AI-5) ter sido decretado. A saída que restou à dupla foi o exílio em Londres, onde Gil aprofundou o contato com as sonoridades do mundo que desembocavam na Inglaterra.
O espírito antropofágico da Tropicália seguiu presente por toda a obra de Gil, sem barreiras rítmicas. Em sua música cabe tudo: do baião ao pop, do samba ao reggae. Luiz Gonzaga, a inspiração base de seu fazer musical, divide espaço com João Gilberto e Bob Marley no panteão musical do baiano, “acusado” de colocar purpurina na MPB.
Perto de completar 80 anos, o músico e compositor foi alçado ao posto de imortal na Academia Brasileira de Letras (ABL). “Contemplo desta tribuna o menino que fui e me espanto. A curiosidade e algumas interrogações daquela época permanecem vivas em mim”, falou em seu discurso de posse.
Sua nomeação constitui um marco, tanto pela baixa representatividade negra na instituição, como pelo reconhecimento da ABL à palavra cantada. Gil se juntou a Antonio Cicero e Geraldo Carneiro, os outros representantes da música popular na Academia.
Brasil como vértice
Embora a dimensão política tenha sempre perpassado a vida e a obra do músico, Gil nunca quis se vincular a uma identidade política rígida. Suas posições no debate público brasileiro sempre estiveram alinhadas a uma visão de mundo progressista. O baiano costuma definir o Brasil como um vértice para o mundo – o caminho do meio, um farol de novas possibilidades civilizatórias a partir da variedade de povos que o país abriga.
“Acham que o nosso papel é a substituição, pura e simples, dos velhos impérios por um império do Brasil. Não acreditam no Espírito Santo. Acham que o pai e o filho dão conta da Trindade. Acham que o Espírito Santo não vai ter um papel nisso tudo. Mas há os que acreditam”, comenta no livro Disposições Amoráveis, que reúne reflexões do artista organizadas por Ana de Hollanda.
Sua convicção não é abalada mesmo com o cenário desfavorável vivido pelo país nas mais diversas áreas. Em conversa com o ator Lázaro Ramos para o programa Amigos, Sons e Palavras, do Canal Brasil, Gil disse acreditar que a resistência de forças políticas e religiosas de cunho reacionário é incapaz de frear a vocação protagonista do Brasil.
“Não adianta, o Brasil é maior do que tudo isso. Não há abismo em que o Brasil caiba. Ele é maior. Quando vai cair, fica preso ali na boca do abismo. Aí o abismo diz ‘tá bom, vá lá, volte para o seu Carnaval'”, afirmou.
Voz do Pará cominformações da DW