Comentário sobre o filme, recém-lançado no Brasil, dirigido por Adam McKay
Somos constantemente bombardeados pelo cinema com obras puramente maniqueístas, nas quais as relações sociais relevantes se resumem ao embate do bem contra o mal. Relações sociais reais, a apropriação privada do produto social que resulta de tais relações ou o tipo de sociabilidade paradoxal e as mazelas sociais delas derivadas, quando muito são motivos de documentários para um público especializado. Nas obras do grande circuito o mal é o mal, ou seja, tudo o que é sofrimento, miséria, destruição, entre tantas outras mazelas sociais, existe porque existe e, no final, só há uma forma de luta: esperar pelo bem na forma de um ser iluminado, de um super herói.
Em muitas dessas obras, ainda, o mal quase sempre é associado a algo exterior ao ser humano (uma entidade paranormal, um ser alienígena, as forças da natureza etc). Quando o mal vem do próprio ser humano é geralmente associado a algum tipo de trauma na infância (violência, abandono, etc), a partir do qual se desencadeia ações de uma violência inominável, que nos é exposta nas telas como algo que poderia até acontecer (se …). Independentemente do tipo de mal, no final, a humanidade sempre merece uma segunda chance, pois quando tudo parece perdido, um sentimento de amor incondicional, como fundamento da vida humana, ressurge para nos resgatar da fatalidade (algo como onde há vida há esperança independentemente do tamanho do estrago). Desfaz, assim, duas grandes ilusões com uma asteroidada só: da tecnologia como tábua de salvação da humanidade; e do nosso recomeço idílico em um novo planeta.
De forma geral, essa é a representação de mundo que nos é apresentada desde sempre, de como ele funciona. Suas implicações, quando observadas do conjunto da obra histórica capitalista, são socialmente e psicologicamente devastadoras: impede a existência de uma lógica comunitária (o indivíduo sempre é colocado como mais importante que o coletivo); coloca a organização social como algo exterior ao ser humano; e torna este último um tipo de fantoche (obediente e subserviente como ser no mundo do capital), sob pena de desencadear as forças do mal contra si mesmo.
Nada contra o entretenimento, tudo contra a alienação e suas implicações desumanizadoras. Essas manifestações alienadas das relações sociais (estrutura econômica) são intrínsecas à própria forma de reprodução do capitalismo enquanto totalidade social. Essa alienação somente pode ser superada, como nos adverte Marx no item “Caráter fetichista da mercadoria e seu segredo”, do livro I de O capital, “[…] quando as relações cotidianas da vida prática se apresentam diariamente para os próprios homens como relações transparentes e racionais que eles estabelecem entre si e com a natureza […]”.
Então, de forma geral, o cinema é uma expressão desse processo de alienação. Todavia, existe também pensamento crítico nesse campo e, vez por outra, ele encontra formas inteligentes de se revelar mesmo no quadro das grandes produções. Inclusive mostrando o quanto é difícil estabelecer a realidade e suas consequências no contexto de uma sociedade completamente alienada. Esse é o caso do filme Não olhe para cima, do diretor e roteirista Adam McKay, lançado em dezembro de 2021.
Uma interpretação cinematográfica que sintetiza de forma brilhante os dilemas contemporâneos da sociedade do capital, embora ainda não desça ao andar das relações sociais de produção. O mote da obra poderia ser qualquer um, mas talvez para ter ampla aceitação do público (ou somente por diversão) ele tenha escolhido a colisão de um grande asteroide com a terra. Já, de início, a ciência nos é apresentada de duas formas. Na primeira, as pesquisas científicas como atividades que procuram entender o universo e o seu funcionamento pelo que realmente são.
Na segunda, a ciência, em especial as tecnologias da informação, como um instrumento de acumulação incessante do capital e de dominação social (o uso de crianças na apresentação de uma mercadoria e o tratamento dado a essas longe dos olhos do público é bastante simbólico). No filme, como no nosso mundo, a comunicação social da grande mídia serve para tudo menos para informar. A notícia de um iminente desastre contada pelos próprios cientistas na mídia nacional, quando não foram levados a sério pela presidenta dos E.U.A., recebe menos importância que a do término de um casal de influencers ou das eleições presidenciais.
No entanto, salvar a terra apresenta-se depois como uma ótima plataforma de campanha para reeleição da presidenta. Finalmente, um plano da primeira forma de ciência é posto em prática para desviar o cometa. Todavia, o capital vê no cometa uma oportunidade de lucro, anula o plano anterior, sobrepõe-se ao governo e a sociedade e impõe a sua solução tecnológica (a tecnologia como redentora de todos os nossos males). O seu plano é esperar o meteoro se aproximar da terra, explodi-lo em fragmentos menores e coletar seus preciosos recursos para fins empresariais, independentemente da ameaça que tal medida signifique para a humanidade.
Temos aqui, claramente, um exemplo de domínio e manipulação do capital sobre as instituições (governo, ciência e sociedade), tal como o derretimento da democracia no mundo real. Como sempre o argumento do grande capital é que a sociedade será favorecida com a geração de empregos, a partir da exploração econômica do asteroide. Então, não olhar para cima, é uma forma de atender aos desígnios do capital. Ainda mais, de conclamar toda sociedade a desprezar quem pense diferente, estabelecendo assim a irracionalidade do debate contemporâneo, expressa na polaridade não olhe para cima/olhe para cima, ou na nossa realidade, esquerda/direita. Irracionalidade porque um debate que tem como fundamento um polo alienado, negacionista, impregnado pelos devaneios do capital e por ele direcionado. O que resta à ciência, a verdadeira ciência neste mundo? O final do filme não poderia ser mais revelador nesse sentido.
Por fim, a grande sacada do filme, ainda que seja como um mero deboche, está em mostrar como o grande capital personificado se apropriou privadamente das instituições, inclusive do Estado, estabelecendo a partir do final do século XX uma sociedade paradoxal, pois ao mesmo tempo associal, a-histórica e apolítica.
VOZ DO PARÁ: Essencial todo dia!