Começa em 23/9 encontro sobre tema de extrema relevância, no mundo à beira do colapso climático. Mas domínio da indústria de ultraprocessados e do agronegócio deve interditar soluções reais
Mesmo em meio à desigualdade mundial de acesso à vacinação de covid-19, a Cúpula dos Sistemas Alimentares, organizada pelas Nações Unidas, aconteceu entre 26 e 28 de julho de maneira presencial e online. Foi uma etapa prévia ao evento principal, a ser realizado agora em setembro.
Com um processo não inclusivo de organização, construção de agenda e perfil restrito de cientistas, o fórum é desafiado por organizações e pessoas que realmente fazem parte dos Sistemas Alimentares – pessoas que produzem, transportam, comercializam e consomem alimentos.
Como o Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) já apontou, a Cúpula dos Sistemas Alimentares está sendo organizada de modo a dar espaço para a indústria alimentícia e para o agronegócio, que não têm interesse de mudar os Sistemas Alimentares no sentido de combater as mudanças climáticas, a fome e a obesidade.
As discussões e acordos da cúpula serão divididos em cinco Linhas de Ação. No entanto, neste cenário de forte influência corporativa no evento – com consequências no futuro dos Sistemas Alimentares e do planeta – cada frente se torna uma brecha para o avanço da agenda da indústria.
Da maneira que estão colocadas, as Linhas de Ação geram incertezas e baixas expectativas para a sociedade civil. O Idec as listou e comenta uma a uma:
Linha de Ação 1 – Assegurar o acesso de todos a uma alimentação nutritiva e segura
No Brasil, no final de 2020 mais de 55% dos lares brasileiros enfrentavam algum nível de insegurança alimentar. No mesmo período, o país foi vice-líder mundial de exportação de commodities agrícolas.
Isto significa que uma grande produção industrial de alimentos, em larga escala, não responde efetivamente às necessidades das pessoas. Mas é nesse sentido que devem ir as discussões da Cúpula dos Sistemas Alimentares, priorizando uma abordagem econômica ao invés de social, de aumento da produção ao invés de melhorar a qualidade da produção de alimentos.
Assim, o acesso a uma alimentação saudável vai na contramão do que quer a indústria e o agronegócio, uma vez que esta lógica desmontaria as estruturas atuais dos Sistemas Alimentares corporativos. Trata-se de uma Linha de Ação que poderá ter resultados aquém do esperado, considerando a influência de grandes corporações no evento. Por isso, espera-se a manutenção do modelo agroalimentar convencional, que gera desigualdades e impactos socioambientais.
Linha de Ação 2 – Adotar padrões de consumo sustentável
As corporações da indústria alimentícia que estão influenciando na organização da cúpula despendem incontáveis recursos para incentivar uma alimentação baseada em ultraprocessados.
No Brasil, o Idec promove o Guia Alimentar para a População Brasileira, publicado pelo Ministério da Saúde e que tem o apoio do Instituto. O material traz pontos necessários para a transição de Sistemas Alimentares, como valorizar a produção local, o consumo de produtos sazonais, ou seja, da época, e cuidar da sua saúde através da alimentação. No entanto, o material foi atacado pelo Ministério da Agricultura, que pediu revisão do guia. A pasta é historicamente ligada ao agronegócio e à indústria de processamento de alimentos.
Os produtos ultraprocessados imitam o gosto e as cores dos alimentos, mas não são comida de verdade. Por isso normalmente recebem aditivos de nutrientes e vendem a ideia de serem enriquecidos, enquanto, na verdade, não passam de uma fórmula industrial. Há muitas evidências robustas de que o consumo de alimentos processados está relacionado ao aumento da obesidade, doenças crônicas não transmissíveis, câncer e até depressão.
Um documento publicado pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde, da Universidade de São Paulo (Nupens/USP) e pela Cátedra Josué de Castro reúne e sintetiza mais de 180 evidências científicas sobre o impacto de ultraprocessados na saúde humana e planetária e sobre as possíveis soluções para transformar os atuais sistemas alimentares globais.
Os riscos à saúde dos produtos ultraprocessados são múltiplos. O Idec recentemente publicou estudo que detecta a presença de agrotóxicos em produtos ultraprocessados. Todos os agrotóxicos encontrados estão presentes também nas lavouras brasileiras, como o glifosato, herbicida mais usado no mundo.
Como é possível inspirar e motivar pessoas a adotarem opções de consumo mais saudável se a indústria e o agronegócio lucram com uma produção que não faz bem para a saúde da população?
O consumo tem também muita relação com o desperdício de alimentos. Segundo relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), cerca de 17% de todos os alimentos no mundo são desperdiçados. E a comida dispensada e não consumida, principalmente por perdas no transporte em larga escala, representa entre 8 e 10% das emissões de gases de efeito estufa.
Boa parte da perda da produção de alimentos se dá em cadeias de distribuição altamente impactantes, como no caso do escoamento de grãos pela malha rodoviária brasileira. São desafios engendrados no modelo de produção convencional, que precisa mudar para práticas mais sustentáveis, como o fortalecimento da produção local e diversificada, ao invés da monocultura de commodities.
Linha de Ação 3 – Incentivar a produção natural e positiva em escala
As atividades do setor da agricultura são as que mais impactam e são as mais impactadas pelas mudanças climáticas. O agronegócio segue batendo recordes de exportação com uma produção baseada no desmatamento de novas áreas, na monocultura de commodities e no uso intensivo de agrotóxicos, que contaminam os cursos d’água e o solo, além de causar impactos na biodiversidade e na saúde das pessoas.
Este é o modelo convencional que predomina nas lavouras do Brasil e de outros grandes países produtores: destruir para gerar riqueza. Por outro lado, essa lógica marca a queda de produtividade do próprio setor, uma vez que os efeitos das mudanças climáticas irão afetar suas safras, resultando em perda de produtividade.
A Cúpula dos Sistemas Alimentares falha ao não propor essa visão para o agronegócio. Pelo contrário, apontou para chefiar o evento Agnes Kalibata, ela é presidente da Aliança para a Revolução Verde na África (AGRA) e portanto ligada aos modelos convencionais e não saudáveis. A tendência é que estes modelos sejam não apenas mantidos, mas promovidos no evento como solução.
A Cúpula, em toda sua programação prévia, não cita ao menos uma vez as práticas agroecológicas ou de agrofloresta. Estas iniciativas, comprovadamente eficazes para manejo sustentável e produção de alimento saudável e orgânico, são a alternativa viável ao agronegócio convencional e precisam de urgente incentivo dos governos.
Atualmente, 72 milhões de hectares de pastagens estão em estado agudo de degradação no Brasil. Aí está uma grande oportunidade para o setor agrícola trabalhar a transição para modelos mais sustentáveis, recuperando as áreas arrasadas ao invés de desmatar ainda mais floresta. Segundo o Instituto ClimaInfo, essa medida poderia significar uma economia de R$ 9,5 bilhões aos produtores. As grandes corporações tardam a entender que preservar é gerar riqueza.
Linha de Ação 4 – Desenvolver meios de vida igualitários
A gente não quer só comer. Para alcançarmos modos de vida mais justos, que beneficiem a todos e não somente uma parte dos atores que compõem os Sistemas Alimentares, é preciso uma transição de modelos e sobretudo, paradigmas.
Meios de vida mais justos e iguais devem incluir todos aqueles que fazem parte dos Sistemas Alimentares. Se falamos apenas de consumo, podemos incluir todas as pessoas do planeta nessa lista. Mas os Sistemas Alimentares estão desequilibrados, com a balança pendendo para quem gera mais lucro. Do outro lado dessa balança estão as 7,8 bilhões de pessoas com o direito de se alimentar de maneira saudável.
Ao abordar a questão da produção, além do que já foi dito em relação às outras linhas de ação, vale destacar a questão das condições de trabalho no campo. Enquanto megacorporações lucram com safras recordes, trabalhadores são explorados e têm seus direitos desrespeitados. No Brasil, essa é ainda uma triste realidade em pleno século XXI.
Meio mais igualitários de vida, que asseguram os direitos e a segurança dos trabalhadores, são consequências também do impulsionamento de Sistemas Alimentares locais, ou seja, cadeias que aproximem a produção e distribuição do consumo de alimentos, respeitando igualmente as tradicionalidades de povos indígenas e tradicionais, diversificando as opções de comida e sua sazonalidade.
Linha de Ação 5 – Criar resiliência para vulnerabilidades, choques e estresses
Na realidade em que vivemos, os Sistemas Alimentares estão sob forte ameaça das mudanças climáticas. Efeitos da elevação da temperatura global causarão perda de produtividade agrícola, atingindo cerca de 18% do PIB mundial. Pensar maneiras de aumentar a resiliência neste contexto é um desafio enorme.
Enquanto a Cúpula adota esta abordagem, a real discussão seria tratar da efetiva transição para Sistemas Alimentares saudáveis e sustentáveis. Não há como deter os impactos de choques e estresses naturais na produtividade de alimentos, a não ser repensando essa lógica autodestrutiva, que além de tudo colabora com a fome de 690 milhões de pessoas no mundo em 2019.
O Idec entende que a Cúpula dos Sistemas Alimentares tem muitas limitações para viabilizar uma transição de modelos saudáveis e sustentáveis. Embora as Linhas de Ação levantem pontos importantes de debate, a captura corporativa identificada no evento deve não apenas travar as discussões, mas propor novos retrocessos para os Sistemas Alimentares, aumentando as desigualdades, a fome, a obesidade e colaborando para as mudanças climáticas.
Para dar voz aos atores que fazem parte dos Sistemas Alimentares, mas ficaram de fora deste espaço tomado pelo corporativismo, a sociedade civil promoveu a Contramobilização dos Povos para transformar os sistemas alimentares corporativos entre os dias 25 e 27 de julho. É necessário criar espaços de resistência, para demandar e propor uma agenda de transição para Sistemas Alimentares sustentáveis e saudáveis.