Nelas vivem 84% da população. São essenciais para a democracia, mas tornaram-se divididas, explosivas, inseguras e insustentáveis — senzalas modernas. Encontro popular, em junho, visa colocá-las no centro da reconstrução do Brasil
O Brasil passa por uma crise política, econômica, social e ambiental. Mas talvez seja nas cidades que essa crise alcance o maior nível de dramaticidade dado o número de brasileiros que são profundamente afetados por ela. Dos 207 milhões de habitantes, mais de 84%, ou 175 milhões, moram nas cidades (IBGE, 2017). Quase 1/3 desse total mora nas grandes metrópoles. O desemprego que chegou a 12,3% da população economicamente ativa brasileira (24 milhões de pessoas) é maior em 13 capitais. A taxa nacional de homicídios alcançou 27,1 (pessoas mortas para cada 100 mil habitantes) mas nas capitais é ainda maior (36,4) e nos bairros pobres maior ainda. Segundo o Atlas da Violência, 553 mil pessoas morreram assassinadas na última década. De cada 100 mortos com arma de fogo, 71 são negros jovens. As vítimas têm cor nessa guerra de média intensidade. Mas as mulheres também merecem destaque. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil é o quinto país em feminicídio. A maior parte das mortas é de mulheres negras. Esses dados sociais e econômicos têm uma expressão territorial intrínseca.
Nas periferias, e também em algumas áreas centrais antigas das grandes cidades, há uma superposição de indicadores sociais e econômicos que escancaram um cenário dantesco e explosivo: baixa renda, baixa escolaridade, maior taxa de homicídios, maior taxa de feminicídio, maior número de favelas, maior número de famílias chefiadas por mulheres ou idosos, maior informalidade no trabalho, maior taxa de desemprego… Alguns mapas mostram que a expectativa de vida do bairro paulistano, periférico, de Guaianazes é de menos de 60 anos, e no luxuoso Jardim Paulista é de praticamente 80 anos. Mais de 20 anos separam o tempo de vida de moradores de diferentes áreas da mesma cidade revelando que o ambiente construído não é um mero reflexo da condição política e econômica, mas uma instância ativa. Comparando os mapas sobre o preço do metro quadrado dos imóveis e a localização da moradia de pretos e pardos, salta aos olhos e existência da senzala urbana e da casa grande urbana onde vivem os brancos endinheirados nas suas mansões ou condomínios murados e protegidos; basta ver mapas da Rede Nossa São Paulo, por exemplo.
E aqui, cabe uma pergunta: por que as cidades são tão ignoradas nas análises da “grande política”? Não se questiona a determinação em última instância, como diria Althusser, da economia política sobre os destinos de determinada sociedade na modernidade? Mas, por que tanto desconhecimento e invisibilidade sobre as cidades em nosso país? Como pode ser negada, ou ignorada, a evidência físico-ambiental constituída pela concentração de milhões e milhões de pessoas vivendo precariamente? Lembramos que essa precariedade inclui o “exílio na periferia”, no dizer de Milton Santos, dado o alto custo, a baixa qualidade e até a inexistência nos fins de semana, do transporte coletivo. A escandalosa apartação social e urbana é necessária para manter essa extravagante desigualdade. Uma polícia mal paga, que mata e morre, é necessária para manter a pressão insuportável para que tudo isso continue dentro da “normalidade”. As milícias administram verdadeiras cidades no Rio de Janeiro, ocupando-se do mercado imobiliário, a distribuição do gás, o transporte alternativo, a internet…. e, em São Paulo, o crime organizado garante “paz, igualdade e liberdade”, incluindo até mesmo ajuda às comunidades e certa “previdência” para os parentes dos “irmãos”. Eles também são necessários para sustentar o equilíbrio instável na cidade sem a presença do Estado.
Nos anos 1980, a reconstrução da democracia no país passou, entre outras instâncias, pelas disputas dos governos municipais. Experiências muito bem sucedidas ficaram conhecidas internacionalmente como foi o caso do Orçamento Participativo, replicado em mais de 4 mil cidades em todo mundo, os corredores de ônibus, conhecidos – ironicamente – como BRT ou Bus Rapid Transit, os CIEPs ou CEUs, destinados a manter as crianças nas escolas em período integral com aulas de artes e atividade esportiva nos currículos, os projetos habitacionais participativos marcados por boa arquitetura e preço baixo, a urbanização dos bairros periféricos com novas soluções paisagísticas de saneamento e drenagem, entre outras marcas importantes. Acompanhando essas práticas, vieram outras conquistas menos práticas: a partir da Constituição de 1988 foi promulgado no país um arcabouço legal fantástico ligado às cidades: o Estatuto da Cidade, a Lei de Consórcios Públicos, Lei do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, Lei do saneamento Básico, Lei dos Resíduos Sólidos, Lei da Mobilidade Urbana e o Estatuto da Metrópole. Leis avançadas para uma realidade atrasada. Leis desconhecidas pelo próprio Judiciário. Apesar das conquistas legais e institucionais, o que inclui até mesmo um Ministério das Cidades, com o Conselho Nacional das Cidades e a Conferência Nacional das Cidades, estas passaram por uma regressão que se aprofunda, evidentemente, após o golpe de 2016.
A necessidade de repensar as cidades está inspirando a formação, quase espontânea, de uma rede em torno da proposta: um projeto para as cidades do Brasil (BRCidades). A partir do chamamento da Frente Brasil Popular para repensar o país, teve início a reunião de pesquisadores, estudiosos, acadêmicos, profissionais e lideranças sociais com a finalidade de debater as cidades e formular um projeto não só com vistas a 2022, mas também, e principalmente, com vistas no médio e longo prazos. Existe uma convicção de que para fortalecer a democracia local é preciso erradicar o analfabetismo urbanístico entre os moradores das cidades, mas também na mídia e nas instituições: executivo, legislativo e judiciário. As cidades são fundamentais como instância participativa na democracia. O conhecimento científico e técnico, urbanístico e ambiental, também é fundamental para combater a manipulação dos investimentos públicos e da legislação urbanística em benefício de poucos, o que caracterizam a corrupção urbanística e o rentismo imobiliário especulativo.
Essa cidade dividida, explosiva, insegura e insustentável não interessa aos 99%, que moram nela. A cidade cooperativa, solidária, diversa, humana, pacífica, sustentável e criativa sim, interessa. Neste ano de 2022, quando o mundo vive uma profunda transição política, econômica e social, quando no Brasil as eleições presidenciais alimentam o debate de um Projeto de Nação, é urgente retomar a construção democrática capilar que passa pelo chão das cidades. Mais de 400 entidades de todas as regiões do país promoverão um Encontro Nacional Popular pelo Direito à Cidade nos dias 3, 4 e 5 de junho próximo, visando incluir uma agenda para as cidades no Projeto de Nação.
A construção é longa, mas a hora é agora e não temos escolha.
por Erminia Maricato (Congresso em Foco) Rede BrCidades.