Religião e sofrimento psíquico

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.

O sofrimento é um estado de sentir-se no mundo entre estranhos e semelhantes, é uma condição própria do indivíduo, e nos acomete por toda a vida

“Quem eu sou?”, “de onde eu vim?”, “o que eu quero?”. Independente da sua idade, você certamente já se deparou com alguma dessas questões em diferentes momentos da vida. Isso porque o ser humano, por sua condição de ser falante e histórico, está sempre às voltas de respostas sobre sua origem, identidade e destino. No entanto, essas questões sempre convocam ao particular de cada um, ao modo como cada pessoa interpreta sua realidade, e cada sujeito irá buscar respostas para essas questões, que movem a vida e nossos interesses mais particulares. Ao se deparar com essas questões, o caminho para a busca de respostas nem sempre é tranquilo e, também, não é isento de dúvidas, impasses, angústias e sofrimento.

E, por que sofrimento? O sofrimento é um estado de sentir-se no mundo entre estranhos e semelhantes, é uma condição própria do indivíduo, e nos acomete por toda a vida, em suas modalidades mais intensas ou não, ocasionando, em casos mais profundos, diversas formas de adoecimento psíquico. Na obra O mal-estar na civilização, Freud (1930) nos mostra que o sofrimento pode ter três fontes. A primeira delas é o poder superior da natureza, a segunda a fragilidade dos corpos, e a terceira a inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres, seja na família, no Estado e na sociedade.

Explico: somos seres desprovidos de recursos naturais de sobrevivência e auto conservação desde o nascimento, precisamos do cuidado materno, ou de uma pessoa de referência, para garantir nossa nutrição, higiene e defesa até momento tardio da vida em relação a outras espécies animais. Também somos desprovidos de recursos fisiológicos que possam garantir nossa sobrevivência em ambientes de natureza hostil e, diante de tudo isso, reunimo-nos em grupos com nossos semelhantes, as sociedades humanas, para que possamos assegurar o mínimo de sobrevivência em comum. 

Assim, desamparados, precisamos do laço social para nos estabelecermos como humanos em um grupo de semelhantes. No entanto, essa mesma necessidade de reunião com nossos semelhantes é também causadora de conflito entre seus membros, bem como desperta-nos sentimentos de inadequação ao coletivo diante da necessidade individual de construir nossas identidades singulares.

Diante disso, indicamos que os relacionamentos são uma fonte de sofrimento. Isso quer dizer que, embora precisamos do grupo de humanos para sobreviver, esse mesmo grupo nos é fonte geradora de mal-estar, porque não é apenas o grupo que nos reúne, mas também a necessidade de singularização e reconhecimento da identidade que nos é própria. De modo que é a partir dessa singularidade que iremos produzir respostas às questões iniciais: “quem eu sou?”, “de onde eu vim?”, “o que eu quero?”. Direcionamos essas perguntas, então, a diferentes destinatários, dentre eles a religião e as práticas terapêuticas.

A religião, tal como Veliq e Francisco (livro Teologia no século 21: novos contextos e fronteiras) nos apresentam, proporciona leitura de mundo e construção de nossa história. Com eles podemos considerar que a religião responde, a partir da crença, às perguntas sobre nossa identidade (“quem eu sou?”), nossa origem (“de onde eu vim?”) e nosso destino (“o que eu quero?”). As repostas, portanto, vêm do outro, do semelhante, que transmite a voz ou a palavra de Deus. As respostas estão dadas, disponíveis, basta que o questionador as interprete a partir do que a divindade espera. 

Nesse sentido, podemos considerar que as respostas estão prontas para os problemas humanos, e podemos encontrar meios de aliviar o mal-estar ou o sofrimento com a adequação de nossos hábitos e vontades a partir do terceiro, no caso o que Deus tem como expectativa ou destino para nós.

Se, na esfera da religiosidade, as respostas para as angústias humanas são apresentadas via interpretação do texto bíblico, nas práticas terapêuticas a busca de respostas a essas mesmas perguntas está centrada no próprio sujeito que as produziu. 

Como psicóloga, preciso alertar aqui que as práticas terapêuticas são sustentadas por rigor científico e não podem ser equiparadas à religião. O objetivo desse contraponto é abordar que as pessoas buscam respostas às questões que movem a vida, e as direcionam a diferentes formas de construção. Não podemos admitir, portanto, que o profissional de psicologia ou psicanálise faça uso da religião ou da fé como ferramenta terapêutica. No entanto, como a fé e a crença fazem parte da construção da leitura de mundo e da realidade de cada ser humano, devemos considerar os efeitos que essas crenças causam na subjetividade de cada paciente.

Essas crenças podem ser, inclusive, fontes de sofrimento que chegam pelas narrativas de pacientes nos consultórios de psicologia, pois diz respeito ao discurso social que funda os laços humanos. A crença diz respeito à construção de respostas singulares às perguntas sobre identidade, origem e destino. Isso porque criamos ilusões para dar conta da realidade que nos cerca, negando os fatos e evidências, reconstruindo para nós uma realidade que nos apresente como mais suportável ou coerente aos nossos interesses. Nesse sentido, podemos dizer que o ser humano não é isento de ambiguidades e dissonâncias, encontrando várias formas de experimentar seu sofrimento e contrariedades que aparecem na construção de sua narrativa.

E, qual a relação entre religião, práticas terapêuticas e sofrimento? Podemos considerar que a religião tem uma força social importante, regula os laços entre os humanos e apresenta modos de vida e hábitos que são fundamentados em discursos morais e éticos de determinada cultura, mas que também tem a qualidade de reproduzir preconceitos e violências sociais a depender de como as regras e valores morais são apresentados, e como podem ser instrumentos para regular o comportamento dos membros da comunidade. Assim, podemos dizer que o discurso religioso e a fé podem ser geradores de sofrimento.

As práticas terapêuticas devem, portanto, considerar a religião e a fé de cada indivíduo, e abordar como a dimensão religiosa é experimentada na singularidade e no sofrimento de cada sujeito, possibilitando, não a reafirmação da fé ou das práticas que regulam a conduta moral e ética, mas reconhecer seus efeitos e auxiliar nos destinos possíveis a essas experiências discursivas.

As práticas terapêuticas, que no senso comum são consideradas como uma ferramenta para o autoconhecimento, são engajadas, principalmente, no questionamento das crenças, dos valores e das interpretações à realidade que se apresentam como geradoras de sofrimento. Desse modo, ao sujeito é possibilitada a fala livre e a escuta atenta e acolhedora do sofrimento, tendo como objetivo a construção de novos caminhos, ressignificações e possibilidades de transformar em narrativa o que foi experimentado até então apenas como angústia.

Nesse sentido, o autoconhecimento passa pelo questionamento desse conhecimento que tomado como verdade universal, mobilizando os imperativos reguladores da vontade humana, de modo a buscar respostas próprias para as questões que apresentamos no início dessa reflexão. Respostas que se constroem no singular de cada um, a partir da escuta atenta e reflexiva proporcionada pelas práticas terapêuticas

por Débora Ferreira Bossa 

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