Um pedaço sem maluco

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Bel-Air é remake desidratado do clássico de Will Smith

Todo bom remake exige algum tipo de atualização – senão, como justificar sua existência? Battlestar Galactica (2003-2009), por exemplo, retomou a série de aventura dos anos 1970 para lapidar abarcante compêndio sobre os perigos da existência no mundo pós 11 de setembro, ainda que a bons milhares de anos à frente de nossos dias. Bom remake.

Já Gracepoint (2014), plasmado ipsis litteris da magnífica Broadchurch (3013-2017), falhou miseravelmente ao transpor do Reino Unido para os EUA a dessacralização da aparente bonança de uma comunidade litorânea a partir de uma tragédia. Até por manter David Tennant à frente do elenco e por configurar-se em nada mais que simples xerox, a “nova” produção nada tinha a dizer ou acrescentar àquilo já previamente enunciado. Mau remake.

O que nos traz a Bel-Air, reboot do cultuado Um maluco no pedaço (Fresh Prince o Bel-Air, no orginal), sitcom que alçou Wil Smith ao estrelato no início dos anos 1990. Recém-estreado nos EUA e produzido pelo Senhor Homens de Preto em pessoa, a série revive a história de Will, adolescente da periferia da Philadelphia forçado a migrar para Bel-Air, região contígua à afamada e não menos luxuosa Beverly Hills.

Se antes era apenas citada no rap da abertura, dessa vez pudemos assistir com detalhes a confusão em que se mete Will com o traficante local, ao ponto da mãe mandá-lo de mala e cuia para a Califórnia, sob a tutela dos tios milionários assentados no extremo oposto das estatísticas, personificação de uma improvável vitória do “sonho americano”. O choque cultural entre esses dois mundos e a discussão sobre o que significa ser negro nos EUA eram as principais fontes de onde a série retirava o material de sua narrativa.

Mesmo que as questões tenham permanecido, tudo agora é outra coisa. O humor, grande trunfo do original, foi suprimido em favor de um tom mais sério e com ares de realismo. Até cabe a mudança, uma vez que o mundo em que vivemos não anda nada engraçado. Do espaço exíguo dos cenários em estúdio da mansão dos Banks à amplidão de locações internas e externas, o que se averigua é um orçamento bem mais polpudo, se comparado ao de trinta anos atrás.

Está justamente aí a primeira pista para começarmos a entender o que se perdeu na transposição. O novo Will (o iniciante Jabari Banks) não centraliza ação e atenção como Smith fazia brilhantemente no original e a imponência dos ambientes parece querer nos distrair dessa escolha. Os Banks, com suas comezinhas agruras familiares, tornam-se o verdadeiro eixo narrativo e o parente desajustado assumirá o papel de vetor de alguma transformação. Em suma, um anjo exterminador açucarado.

(Em detrimento da matriz de onde se origina, lembra mais obras como Um vagabundo na alta roda ou mesmo Teorema – se Pasolini tivesse feito uma novela ruim das sete e não o memorável filme.)

A historinha segue a mesma, com os mesmíssimos nós narrativos: uma festa chique no dia em que Will chega à Califórnia no primeiro episódio, a rivalidade com o primo Carlton, a conexão com a prima menor (metáfora para a pureza do personagem), a rebeldia juvenil e as lições aprendidas duramente a cada nova escorregada.

Mas é na busca desesperada pela atualização que Bel-Air comete seus maiores tropeços. Como obra que deseja ser sinônimo de ativismo e relevância, erra ao não se utilizar das questões da negritude para gerar o drama. Estas são apenas acopladas à narrativa já estruturada, como se fixadas a posteriori com fita durex sobre um corpo independente que já existia. Todo esse lado ativista que a série aspira acaba soando artificial e gratuito. Faltou assistir mais a Black-ish ou Atlanta.

Mutatis mutandis, o novo Tio Phil acaba condensando o espírito (ou assombração) daquilo que serve de norte a este remake. Se lá no Maluco no Pedaço o rígido, mas bonachão juiz era leitor ardoroso de Malcolm X, o ambicioso advogado em campanha para a Promotoria Pública em quem foi transformado é fã de Paulo Coelho.

Tudo o que era anárquico tornou-se mero novelão, como se tivessem arrancado um grafitti de um muro da cidade para emoldurar e pendurar em alguma parede de casa de gente rica, matando-o de certa forma. Se a ideia era destilar algo da série que pudesse tocar o público de hoje, o máximo que conseguiram foi desidratar um clássico.

(BEL-AIR – ainda sem previsão de estreia no Brasil).

VOZ DO PARÁ: Essencial todo dia!

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