Música sertaneja e política partidária

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Evandro Oliveira
Evandro Oliveira
PÓS GRADUADO EM GESTÃO E DIREÇÃO ESCOLAR; ESPECIALISTA EM "POLÍTICAS DA IGUALDADE RACIAL NA ESCOLA", SABERES AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NA AMAZÕNIA - PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ (UFPA); GRADUADO CIÊNCIAS SOCIAIS COM ÊNFASE EM SOCIOLOGIA - UFPA; ATUA COMO PROFESSOR DE FILOSOFIA E SOCIOLOGIA NA REDE PÚBLICA E COMO PROFESSOR NO ENSINO SUPERIOR E CURSOS PRÉ-VESTIBULARES.
Um mercado musical altamente controlado e vinculado às alas burguesas mais retrógradas do país

Dominada pelas pautas morais que correram as redes sociais na forma de fake news, a última eleição presidencial mostrou ser um capítulo decisivo da história brasileira e atestou as fraturas históricas que há muito corroem essa nação continental.

Enquanto os candidatos e candidatas tentavam manter-se em pé no terreno movediço das discussões em torno dos costumes e religião, as pautas neoliberais permaneceram praticamente intocadas, e o agronegócio — um dos setores que mais se beneficiou do desmonte dos direitos trabalhistas e da desregulação das leis ambientais — manteve sua aparência íntegra e bem arrumada.

O segundo turno confirmou as expectativas da sociedade e os resultados das pesquisas: o Palácio da Alvorada viria a ser disputado por Jair Messias Bolsonaro e Luís Inácio Lula da Silva. Este segundo round significou uma intensificação da disputa, na qual ambos os candidatos colocaram todas suas cartas na mesa. O apoio de artistas e outras personalidades famosas passou a figurar como um dos elementos estratégicos a fim de angariar possíveis votos indecisos e abstencionistas. Enquanto Lula contou com boa parte de artistas musicais provenientes do samba, pop e MPB, Jair Bolsonaro agregou ao seu palanque o notável apoio sertanejo.

O engajamento político de artistas ligados à música sertaneja não é algo inédito. É possível rastrear uma atividade deste gênero ligada à política, ainda no início do século XX. Alvarenga & Ranchinho foram presos diversas vezes pelo governo de Getúlio Vargas, condição que perdurou até serem convidados a fazer apresentações para o Presidente, quando a anterior relação de inimizade se transformou em apoio mútuo. Já durante a década de 1960, duplas como Léo Canhoto & Robertinho e Tonico & Tinoco tomaram a frente na defesa da Ditadura Militar, compondo e cantando músicas que exaltavam os feitos do regime autoritário.

Porém, é durante o governo de Fernando Collor de Mello que ocorre uma mudança significativa na participação política desses artistas. Diferentemente dos exemplos anteriores, em que o apoio se deu de forma desassociada, é possível perceber na defesa dos sertanejos a Fernando Collor a formação de um bloco sertanejo coeso que conseguiu pautar e falar em nome de todo um gênero. Na visita à Casa da Dinda, evento mais explícito de apoio ao então presidente, houve a participação de mais de 40 artistas sertanejos, que fora articulado pelo radialista e dono da Rádio Atividade, Wigberto Tartuce e pelo apresentador de TV, Gugu Liberato, que comandava o Sabadão Sertanejo, mais importante programa do gênero na época.

Assim como na década de 1990, podemos verificar um elemento de coesão no apoio sertanejo a Jair Bolsonaro, quando cantores como Leonardo, Chitãozinho e Fernando Zor, se articulam em uma visita de explícita defesa ao então candidato. É certo que há, em casos como esses (de intenso engajamento na campanha), motivações políticas e econômicas bem definidas que se encontram diretamente relacionadas à posição social na qual os indivíduos estão situados.

Nesse sentido, o apoio de Zezé Di Camargo ou Gusttavo Lima pode ser explicado a partir de interesses diretamente ligados às pautas corporativas do agronegócio, uma vez que eles são, também, empresários do ramo. Porém, para entendermos como este conjunto de artistas consegue modelar toda a posição da música sertaneja, faz-se necessário compreender as transformações próprias ao gênero, sua formação social e expressões artísticas.

Ao tomar esta via, nos afastamos das leituras que identificam o apoio sertanejo ao candidato Jair Bolsonaro como resultado de uma espécie de “ressentimento” deste setor às classes médias paulistas, cariocas e a esquerda em geral.[i] Assim como também nos distanciamos de outras análises[ii] que condenam todo o gênero ao mais torpe conservadorismo, construindo um tipo de perspectiva em que, geralmente, ocorre uma hibridização entre a crítica da posição política desses artistas e uma baixa valorização das suas produções musicais. O que resulta, por um lado, em grave e histórico preconceito musical para com a música sertaneja e, por outro, em reduzida capacidade de compreensão do fenômeno.

A música sertaneja é um gênero que conseguiu concentrar e expressar as transformações socioeconômicas pela qual o mundo rural passou, sobretudo as advindas da modernização agrícola ocorrida a partir da década de 1960, que preparou as bases para o surgimento do moderno agronegócio na década de 1990. Fato que também os vinculou, no século XX, ao contingente de migrantes e trabalhadores que se formavam nas metrópoles e constituíam seu fiel público. Neste mesmo período de alteração da estrutura social e econômica brasileira, a música sertaneja se transformou estética e extra esteticamente.

No âmbito estético, a geração romântica incorporou ao seu cancioneiro a farra dos rodeios que se disseminavam pelo país, a vida estradeira do caminhoneiro, a experiência do migrante na cidade, bem como as frustrações das relações afetivas e a solidão do sujeito moderno de fim de século. Também houve modificação em relação à origem social dos sertanejos. Enquanto os primeiros artistas do gênero eram oriundos, em sua maioria, do interior de São Paulo, verifica-se, a partir da década de 1960, uma ampliação gradativa da quantidade de artistas provenientes do Centro-Oeste brasileiro. As estradas que outrora os trazia e levava a Botucatu, Itaporanga ou Tietê, ganharam uma nova rota, cujo rumo é Goiânia, a nova capital da música sertaneja.

Nos anos 2000, essa tendência se intensifica em diversos âmbitos. O Sertanejo Universitário surge a partir da ampliação do ensino superior do país,[iii] da consolidação do agronegócio durante o governo Lula e da elevação do preço internacional das commodities a partir da demanda chinesa, que possibilitou a ampliação do crédito e do consumo no Brasil.

Em consonância com o momento do país, essa nova fase da música sertaneja passou a construir e imaginar um mundo de festejo, sucesso e curtição que se condensou no “microcosmo” da balada sertaneja, consolidando tanto estética quanto comercialmente este gênero no imaginário brasileiro e no mercado musical do país. Ao mesmo tempo, todas essas modificações vieram acompanhadas de uma estruturação e profissionalização crescentes da produção e circulação deste gênero musical. Nessa posição, a música sertaneja garantiu, por um lado, o surgimento de um ramo de produção musical no mercado brasileiro formado por escritórios, bandas, compositores e produtores de renome, especializados na elaboração deste produto artístico e, por outro lado, um setor privilegiado de circulação da mercadoria musical, as feiras agropecuárias e os rodeios.

A preponderância e importância alcançada pelos escritórios de produção e administração das carreiras dos artistas e os eventos de exaltação do agronegócio – que mantêm relações duvidosas com prefeituras de pequenas cidades no quesito de captação de recursos financeiros e sua destinação cultural – como principal espaço de circulação da música sertaneja resulta em uma crescente e grave influência desses setores na posição política dos sertanejos.[iv] Nesse sentido, uma crítica a Jair Bolsonaro poderia vir a desafinar a conveniente relação histórica deste gênero com a burguesia agrícola, uma das mais engajadas no apoio ao projeto bolsonarista.[v]

Isto é possível de se perceber no episódio em que João Gomes (que, embora faça parte do gênero piseiro, compartilha de um público e depende de estruturas de produção e circulação semelhantes ao dos sertanejos) puxou um coro contra Jair Bolsonaro em setembro de 2022. Após a má repercussão, o jovem artista se desculpou e declarou não “levantar nenhuma bandeira”, o que não foi o bastante para o Sindicato Rural de Imperatriz, que recusou a participação do cantor — que já se encontrava marcada — no Parque de Exposições da cidade.[vi] Do mesmo modo, cabe relembrar que em 2018 a sertaneja Marília Mendonça aderiu à campanha do “#Elenão”, recuando tempos depois, após sofrer críticas do público e ameaças à sua família.[vii] Nesse ano, poucos sertanejos se manifestaram explicitamente em apoio a outra candidatura que não a de Jair Bolsonaro, com exceção de artistas como Lauana Prado e Gabeu, que declararam voto em Lula.

É evidente que o agronegócio não pode ser entendido aqui como uma chave explicativa unívoca para se compreender essa relação do gênero com os setores mais conservadores da direita. Porém, do mesmo modo, não podemos desprezar sua intensa relação com a música sertaneja e a atual importância comercial que este setor mantém, principalmente, na esfera da circulação. Disso decorre o silêncio profissional que a maioria dos artistas sertanejos mantém quando o tema é a política, caminhando para o discurso ideológico da neutralidade, resultado de um mercado musical altamente controlado e vinculado às alas burguesas mais retrógradas do país.

No lugar de ler o apoio sertanejo aos governos conservadores e neoliberais como resultado de um “ressentimento”, o que equivaleria levarmos todos e todas a um divã, devemos indagar de onde sai e para onde vai o tanto de dinheiro que ronda este gênero musical e qual o real grau de liberdade e autonomia dos artistas que o compõem. Nesse sentido, nossa atenção deve se voltar não apenas para entender e analisar o burburinho dos que apoiaram Jair Bolsonaro, mas também para o silêncio dos que optaram por não manifestar a sua opinião.

VOZ DO PARÁ: Essencial todo dia!

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